segunda-feira, 24 de setembro de 2018

2017 – Trama Fantasma (Paul Thomas Anderson, EUA) ***** (5.0)


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Paul Thomas Anderson se consolida como um dos mais interessantes cineastas americanos dos últimos tempos, com suas narrativas cada vez mais refinadas, estilo de encenação que prioriza a vocalização sobre os trejeitos e principalmente um olhar erótico sobre qualquer assunto. Quando digo erótico não quero dizer necessariamente sensual, mas que carrega certo mistério, certa estranheza. Um dos motivos disso não é só sua estética, mas também a trilha-narração de Greenwood que invade as cenas e se torna as rodas para que o senso de tensão caminhe.
            
É até mesmo difícil comentar separadamente acerca de cada questão técnica, pois o filme escoa pela tela em sua totalidade, como se todas as suas camadas tivessem tão engrenhadas umas nas outras que se tornassem um bloco audiovisual intensivo. É interessante notar o caminho no qual PTA está trilhando indo dos seus longas iniciais, em que o entrelaçamento das narrativas de seus personagens existia como foco, para chegar a hoje, em que a narrativa se concentra em dois ou três personagens, buscando o máximo de tensão no pequeno espaço que os separam.
            
Com isso, Reynolds Woodcock, numa sempre magistral atuação de Daniel Day-Lewis, vive uma vida completamente destinada à sua obsessão de fazer vestidos, sempre infeliz com seus relacionamentos. Sua vida muda quando encontra com Alma, uma garçonete de um pequeno café. O que há de especial nela é difícil de se perceber a princípio. Ao nos depararmos com a beleza, um pouco apagada, de Vicky Grieps, parece que existe algo que o chama a atenção da qual, nós espectadores, não conseguimos ter acesso. Compondo o elenco ainda há Cyril (Lesley Manville), irmã, quase mãe de Reynolds, que vive com ele e administra sua vida.
            
É digno notar que o design de produção do longa e suas roupas estão num nível exuberante, a forma com que os vestidos, o tecido, as linhas são filmadas, são objetos feitos com extrema precisão, mas que se tornam mágicos no olhar cinematográfico. Para além disso, a ambientação, as casas, os carros, esses pequenos detalhes nos colocam nos anos 50 com uma facilidade extrema, por mais que praticamente não exista momentos fora da mansão dos Woodcock. Porém, o ambiente se torna eloquente e elegante por conta da preciosidade do estilo de Anderson, que nos carrega em uma câmera móvel pelas escadas, por quartos, e quando a câmera foca na mesa de café da manhã, ou de jantar, os utensílios e as paredes parecem que se tornam parte integrada da vida dos personagens, parece que existe um pouco deles afetivamente nos objetos.
            
Essa qualidade fotografia se configura não só pela coloração bem elaborada, mas sim por um certo brilho clássico que produz uma névoa luminosa no mundo em que estes personagens se relacionam. É de certo, um estilo formalista, existe algo do clássico americano aqui, mas, principalmente do erótico, é a mesma névoa que absorve o rosto de Bergman em Interlúdio. Aliás, os planos-sequências são realizados de maneira a tornar grande parte das ações e decisões dos personagens mais misteriosas e tensas. Afinal, é o mistério que define o espaço entre Reynolds e Alma.
            
Veja só, Reynolds se apaixona por Alma, não só por, como diz Cyril, ter a forma física que mais o agrada, mesmo com suas “imperfeições”, mas também, pois existe algo a se construir com ela. Ele a veste por isso, para criar uma obra de arte, que não é o vestido, mas uma mulher ideal. É um ato de narcisismo total, de projeção de ego. Mas o que ele não esperava é que Alma tivesse um poder erótico que polisse seu narcisismo. É possível descrever o processo da relação dos dois, a princípio, não existia um espaço para Alma agir na vida dele, ela sempre era objeto de suas produções artísticas, mas não de maneira forçosa. Ela o queria, principalmente pela sua fome incessante, de forma literal e simbólica.
            
Ela gostaria de adentrar em seu quarto, mas sempre era impedida de habitar seu território egoísta. Aos poucos, começa a desafiar essa dominação, o que de maneira interessante cria desejo nele, ou seja, passa a permitir a entrada dela pouco a pouco em sua estrutura subjetiva, tateando os limites. Mas não como um passe de mágica, é entre irritações e gracejos por ser confrontado, com efeito sua fome cresce no mistério de Alma. Mas a grande façanha dela é perceber o mecanismo de funcionamento de Reynolds. Quando ele trabalha de forma tão intensa para compor essa sua grande fome, fica, por conseguinte, doente, completamente vulnerável e completamente a mercê dos cuidados de um outro.
            
Por isso mesmo, é possível compreender tamanha gratidão que ele tem por sua mãe, que surge em mensagens secretas em todos os vestidos que faz. Não é à toa que, quando Alma cuida dele, alucina com sua mãe. Essa vulnerabilidade de ser controlado é desejada por ele, ao mesmo tempo que a necessidade do controle de outro. A relação dos dois se desenvolve como num limite extremo entre o espaço egoísta dos dois, do desejo para com outro e de ser desejado pelo outro. Nessa estranheza guerra de sedução, a violência, seja simbólica quanto real, parece compor algo muito comum de todas as relações, os limites entre o que cada um é, e o que cada um pode fazer para o outro.
           
O espaço entre eles é composto por um mistério que aparentemente é desvendado numa sequência deslumbrante de silêncio, olhares e de uma espécie de morte de si. Quando PTA foca no beijo, a trilha cresce e invade, uma estranha luz fantasmagórica se faz no fundo. Eis aí uma paixão irresistível e por mais dissecada e aberta pelas entranhas mantém seu mistério de composição romântica, onde a razão se desfaz.

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