
Os corpos expostos à luz do Sol,
num calor tropical absurdo, com taças de vinhos e a flacidez do tempo. Uma
piscina insalubre, tão suja que ninguém pode se banhar, ninguém pode se
refrescar, um tempo paralisado, um tempo morto. Essa é a primeira cena do longa
de estreia de Martell, em que um grupo de amigos, na casa de praia de Mecha, se
banham de nada. Contraposto a essa cena, pela montagem, as crianças caçam no
pântano, uma vaca atolada. O fim de sequência se faz om o acidente de Mecha, ao
se cortar com a taça de vinho.
A
diretora explora duas famílias muito distintas, mas que se unem pela ligação
que tem Mecha e Tali, que são quase primas. Digo quase, pois é assim que se
denominam em certo momento do filme, e como conhecemos o funcionamento dessa
palavra na América Latina, por vezes, o laço sanguíneo é desnecessário. São duas dinâmicas completamente diferentes.
Na família de Mecha, sua relação é de certa superioridade em relação ao marido,
que até mesmo aceita dormir nos quartos dos fundos, talvez não porque seja
oprimido pela figura carrancuda de sua esposa, mas sim por ter objetivos
distintos que a do relacionamento com ela, como por exemplo, sua vaidade. Seu
filho mais novo, Joaquim carrega consigo todos os preconceitos de certa classe
argentina, em relação aos imigrantes descendentes de indígenas, buscando uma
virilidade na qual o afeto é sinal de fraqueza. Já o filho mais velho, José,
que vive com a esposa Mercedes, volta ao saber do acidente da mãe na beira da
piscina. Claramente, ele está fugindo de uma vida que não lhe agrada. Buscando
numa relação que beira ao incesto com sua irmã Veronica, ou ainda o desejo pela
empregada Isa, um retorno a um tempo sem leis ou regras.
Mas
de certo as personagens mais interessantes desse lado são Veronica e Momi. As
duas perambulam pelo enquadramento o tempo inteiro, muitas vezes só com os
olhares. Veronica é que força a própria relação incestuosa com o irmão, com
brincadeiras pueris. Já Momi é fissurada por Isa, fica horas e horas deitada
com a mesma, a tocando pelas beiradas. Sempre com uma efusão sexual, mas sem
nunca se submeter ao sexo. Martel parece trabalhar com personagens que emanam
desejo em seus corpos. São corpos inertes, por vezes em movimento abruptos, mas
sempre carregados dessa tensão, como estivessem a tanto esperando por algo que
nunca se realiza. Por isso, ela os filma tão de perto, com certa oleosidade na
pele, de maneira desengonçada. Momi
ainda tem, assim como sua mãe, uma característica a mais, tendem a permanecer
longos tempos na cama a observar a história da menina santa que produzia
milagres. Talvez o milagre que buscam para movimentar-se.
Já
Tali tem uma relação comum com seu marido, porém ele com certeza é a figura
patriarcal tradicional, comandando as relações. De seus filhos, também quatro,
o mais notório é o pequeno Luciano, sempre a observar situações atentamente.
Temendo que um dia o cachorro do outro lado de sua casa possa atacá-lo,
derrubando a parede que os separa. A casa dela é muito mais arrumada, o que
mostra certa inconformidade com sua prima, apesar de gostarem uma das outras, a
repudia por sua bagunça mental, porém nunca poderá tomar decisões próprias como
ela.
Em
toda movimentação dos personagens, sejam os primos que se misturam, a casa que
se enche de familiares e empregados, os cachorros, as tartarugas, a própria
vaca, a sujeira, o calor, existe aí algo do latino americano que explode. Não é
à toa o elitismo provinciano, que mostra a força das relações de poder, o amor
de Momi por Isa só se desenvolve numa efetuação de posse, de dominação. Ou
ainda, Veronica pedindo aos jovens indígenas à experimentarem as roupas
masculinas para comprar a seu irmão, objetificando-o com o olhar. É nesse tropicalismo Kafkiano que é possível
ver um rizoma de acontecimentos, que misturarem-se, que se abrem, mas sem nunca
haver uma explicação para tal. O espectador é imerso nesse universo da espera,
da efusão sexual sempre em tom estranho.
É
preciso, ainda, salientar que Martel sempre produz dois filmes, algo como Bazin
costumava dizer sobre Bresson, existe um filme de imagens e um filme de sons. A
força com a os efeitos sonoros se fazem no longa, os grilos, a grama, a água,
ou som do deitar-se na cama e arrastar-se no lençol, são forças que tornam a
imagem tátil, mas contam uma história por si só. A voz da pequena filha de Tali
no ventilador, sendo distorcida, como uma forma de vivenciar o tédio, na
metamorfose do som. Quase sempre é o fora de campo que produz vida em todo o
cenário.
Essa
não é uma jornada de engrandecimento moral, muito menos uma investigação
intelectual. Martell nos coloca dentro de um universo em movimento, em toda sua
duração, com todas as suas entradas diversas.
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