sexta-feira, 13 de julho de 2018

2001 – O Pântano (Lucrecia Martel, Argentina) ****1/2 (4.5)


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Os corpos expostos à luz do Sol, num calor tropical absurdo, com taças de vinhos e a flacidez do tempo. Uma piscina insalubre, tão suja que ninguém pode se banhar, ninguém pode se refrescar, um tempo paralisado, um tempo morto. Essa é a primeira cena do longa de estreia de Martell, em que um grupo de amigos, na casa de praia de Mecha, se banham de nada. Contraposto a essa cena, pela montagem, as crianças caçam no pântano, uma vaca atolada. O fim de sequência se faz om o acidente de Mecha, ao se cortar com a taça de vinho.
            
A diretora explora duas famílias muito distintas, mas que se unem pela ligação que tem Mecha e Tali, que são quase primas. Digo quase, pois é assim que se denominam em certo momento do filme, e como conhecemos o funcionamento dessa palavra na América Latina, por vezes, o laço sanguíneo é desnecessário.  São duas dinâmicas completamente diferentes. Na família de Mecha, sua relação é de certa superioridade em relação ao marido, que até mesmo aceita dormir nos quartos dos fundos, talvez não porque seja oprimido pela figura carrancuda de sua esposa, mas sim por ter objetivos distintos que a do relacionamento com ela, como por exemplo, sua vaidade. Seu filho mais novo, Joaquim carrega consigo todos os preconceitos de certa classe argentina, em relação aos imigrantes descendentes de indígenas, buscando uma virilidade na qual o afeto é sinal de fraqueza. Já o filho mais velho, José, que vive com a esposa Mercedes, volta ao saber do acidente da mãe na beira da piscina. Claramente, ele está fugindo de uma vida que não lhe agrada. Buscando numa relação que beira ao incesto com sua irmã Veronica, ou ainda o desejo pela empregada Isa, um retorno a um tempo sem leis ou regras.
            
Mas de certo as personagens mais interessantes desse lado são Veronica e Momi. As duas perambulam pelo enquadramento o tempo inteiro, muitas vezes só com os olhares. Veronica é que força a própria relação incestuosa com o irmão, com brincadeiras pueris. Já Momi é fissurada por Isa, fica horas e horas deitada com a mesma, a tocando pelas beiradas. Sempre com uma efusão sexual, mas sem nunca se submeter ao sexo. Martel parece trabalhar com personagens que emanam desejo em seus corpos. São corpos inertes, por vezes em movimento abruptos, mas sempre carregados dessa tensão, como estivessem a tanto esperando por algo que nunca se realiza. Por isso, ela os filma tão de perto, com certa oleosidade na pele, de maneira desengonçada.  Momi ainda tem, assim como sua mãe, uma característica a mais, tendem a permanecer longos tempos na cama a observar a história da menina santa que produzia milagres. Talvez o milagre que buscam para movimentar-se.
            
Já Tali tem uma relação comum com seu marido, porém ele com certeza é a figura patriarcal tradicional, comandando as relações. De seus filhos, também quatro, o mais notório é o pequeno Luciano, sempre a observar situações atentamente. Temendo que um dia o cachorro do outro lado de sua casa possa atacá-lo, derrubando a parede que os separa. A casa dela é muito mais arrumada, o que mostra certa inconformidade com sua prima, apesar de gostarem uma das outras, a repudia por sua bagunça mental, porém nunca poderá tomar decisões próprias como ela.
            
Em toda movimentação dos personagens, sejam os primos que se misturam, a casa que se enche de familiares e empregados, os cachorros, as tartarugas, a própria vaca, a sujeira, o calor, existe aí algo do latino americano que explode. Não é à toa o elitismo provinciano, que mostra a força das relações de poder, o amor de Momi por Isa só se desenvolve numa efetuação de posse, de dominação. Ou ainda, Veronica pedindo aos jovens indígenas à experimentarem as roupas masculinas para comprar a seu irmão, objetificando-o com o olhar.  É nesse tropicalismo Kafkiano que é possível ver um rizoma de acontecimentos, que misturarem-se, que se abrem, mas sem nunca haver uma explicação para tal. O espectador é imerso nesse universo da espera, da efusão sexual sempre em tom estranho.
            
É preciso, ainda, salientar que Martel sempre produz dois filmes, algo como Bazin costumava dizer sobre Bresson, existe um filme de imagens e um filme de sons. A força com a os efeitos sonoros se fazem no longa, os grilos, a grama, a água, ou som do deitar-se na cama e arrastar-se no lençol, são forças que tornam a imagem tátil, mas contam uma história por si só. A voz da pequena filha de Tali no ventilador, sendo distorcida, como uma forma de vivenciar o tédio, na metamorfose do som. Quase sempre é o fora de campo que produz vida em todo o cenário.
            
Essa não é uma jornada de engrandecimento moral, muito menos uma investigação intelectual. Martell nos coloca dentro de um universo em movimento, em toda sua duração, com todas as suas entradas diversas.

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