quinta-feira, 17 de maio de 2018

1970 – Os Palhaços (Federico Fellini, Itália) **** (4.0)


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Não me recordo onde a li, ou mesmo quem seja o autor, mas uma certa frase me vem à cabeça quando penso nesse filme de Fellini: “a memória é um poeta, não um historiador”. É exatamente deste ponto que reside a grande filmografia do diretor, em que a poética mnêmica se mistura com a fantasia imaginativa e onírica. Algo que tende a explorar com mais intensidade a partir de 8 ½. Palhaços é uma mistura entre o documentário e a ficção, na qual o diretor explora sua experiência com o burlesco dos palhaços, além de trazer a história e os conceitos inerentes a essa arte circense.
            
A primeira sequência na qual o pequeno menino, sendo este uma figura do próprio Fellini quando criança, observa na madrugada a montagem do circo em frente à sua casa. Para no outro dia descobrir a magia desse lugar. A construção do circo parece como uma pequena maquete trazendo a potência do olhar infantil àquele momento, ao mesmo tempo que o aspecto mágico que persiste no outro dia, não só com a grandeza da sua locação, mas com o vento misterioso que sopra em todos os filmes do diretor quando o encontro com o novo ou inesperado estão se produzindo. A apresentação do circo ocorre de forma ininterrupta, com movimentos de câmera rápidos e consistentes, não seriam os palhaços figuras perfeitas para Fellini construir seus quadros de estranhamento? De fato, substituindo o incômodo por uma comédia pueril, tão inocente que parece desconhecida. Digo inocente não porque lhe falte malícia, mas porque é uma comédia do sem sentido, do próprio movimento dos corpos, como o burlesco cinematográfico.
            
O discurso do diretor conduz o ritmo do filme, trazendo alguns devaneios e memórias sobre a marca que tais artistas causaram nele. De certo, o momento mais conceitual do longa é a visita à casa de Pierre Etaix, um cineasta francês que persistiu com a lógica do burlesco cinematográfico, um pouco como Jacques Tati, porém exercendo sua força no uso do corpo mais precisamente. Acerca da conceituação dos tipos de palhaços, o seu semi-documentário ou ainda o seu mockmentary, traz consigo duas formas de expressão artística com mais ênfase, o Augusto, aquele que se encontra no imaginário popular, o bobo espalhafatoso e o Branco, um tipo mais inteligente e mais contido, tenta sempre pregar peças nos outros, pelo simples ato de fazê-los. O surgimento inesperado de Anita Ekberg, com os zooms e a montagem a relacionando com os tigres do circo tornam de certo o tom do filme muito ambíguo. A presença quase que onipresente da equipe de filmagem, com seus diálogos por trás da câmera, ou pelos seus erros de gravação fazem a magia e o truque coexistirem em ato.
            
Aliás, na montagem de seu filme, existe uma certa analogia entre os vagabundos e bêbados com os artistas circenses, principalmente os palhaços. Mas não num sentido de que um artista com certeza é um ocioso, mas na forma com que tropeçam, que os corpos cambaleiam, gaguejam é nesse sentido que na performance o artista alcançar o inesperado nonsense do bêbado. É um movimento despersonalizado, um movimento de mundo, na qual as coreografias se associam. A última sequência do longa, o funeral do palhaço, na qual atesta a incongruência da existência deste tipo de riso num mundo tão fissurado pelo sentido das coisas. A sucessão de ações, conduzida pela velocidade rítmica, pelos zooms inesperados, pelas elipses ocasionais que transformam o espetáculo tragicômico do palhaço num eterno trem que em cada uma de suas janelas não deixa apresentar intensidades, na qual o sentido pouco se cola.
            
No seu filme, perguntam para Fellini o que gostaria de dizer com esse filme. Eis que é impedido, pois bem, o significado não é o importante para o diretor, não é o fim que lhe importa, mas sim as entradas, o impacto delas, a aura mágica que movem o seu corpo de forma desconhecida. Nessa incursão abre entradas para a sua memória, para a história e conceitos, para arqueologia e para o próprio acontecimento da performance do palhaço.
            
Portanto, produzido, a princípio para TV, Fellini produz uma obra curta, interessante, que mistura o formato do documentário e da ficção de forma que se tornam complementares em sua investigação, sempre mnemônica, mesmo que jornalística em certo ponto. Assegurando o palhaço, aquele que ri e chora, como figura central da construção muitos de seus personagens. Vale lembrar Gelsomina e Cabíria, na qual Giulietta Masina sempre criava um tom burlesco cinematográfico aos personagens, personagens que são pura intensidade.

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