
Não me recordo onde a li, ou
mesmo quem seja o autor, mas uma certa frase me vem à cabeça quando penso nesse
filme de Fellini: “a memória é um poeta, não um historiador”. É exatamente
deste ponto que reside a grande filmografia do diretor, em que a poética mnêmica
se mistura com a fantasia imaginativa e onírica. Algo que tende a explorar com
mais intensidade a partir de 8 ½. Palhaços é uma mistura entre o documentário e
a ficção, na qual o diretor explora sua experiência com o burlesco dos
palhaços, além de trazer a história e os conceitos inerentes a essa arte
circense.
A
primeira sequência na qual o pequeno menino, sendo este uma figura do próprio
Fellini quando criança, observa na madrugada a montagem do circo em frente à
sua casa. Para no outro dia descobrir a magia desse lugar. A construção do
circo parece como uma pequena maquete trazendo a potência do olhar infantil
àquele momento, ao mesmo tempo que o aspecto mágico que persiste no outro dia,
não só com a grandeza da sua locação, mas com o vento misterioso que sopra em
todos os filmes do diretor quando o encontro com o novo ou inesperado estão se
produzindo. A apresentação do circo ocorre de forma ininterrupta, com
movimentos de câmera rápidos e consistentes, não seriam os palhaços figuras
perfeitas para Fellini construir seus quadros de estranhamento? De fato,
substituindo o incômodo por uma comédia pueril, tão inocente que parece
desconhecida. Digo inocente não porque lhe falte malícia, mas porque é uma
comédia do sem sentido, do próprio movimento dos corpos, como o burlesco
cinematográfico.
O
discurso do diretor conduz o ritmo do filme, trazendo alguns devaneios e
memórias sobre a marca que tais artistas causaram nele. De certo, o momento
mais conceitual do longa é a visita à casa de Pierre Etaix, um cineasta francês
que persistiu com a lógica do burlesco cinematográfico, um pouco como Jacques
Tati, porém exercendo sua força no uso do corpo mais precisamente. Acerca da
conceituação dos tipos de palhaços, o seu semi-documentário ou ainda o seu
mockmentary, traz consigo duas formas de expressão artística com mais ênfase, o
Augusto, aquele que se encontra no imaginário popular, o bobo espalhafatoso e o
Branco, um tipo mais inteligente e mais contido, tenta sempre pregar peças nos
outros, pelo simples ato de fazê-los. O surgimento inesperado de Anita Ekberg,
com os zooms e a montagem a relacionando com os tigres do circo tornam de certo
o tom do filme muito ambíguo. A presença quase que onipresente da equipe de
filmagem, com seus diálogos por trás da câmera, ou pelos seus erros de gravação
fazem a magia e o truque coexistirem em ato.
Aliás,
na montagem de seu filme, existe uma certa analogia entre os vagabundos e
bêbados com os artistas circenses, principalmente os palhaços. Mas não num
sentido de que um artista com certeza é um ocioso, mas na forma com que
tropeçam, que os corpos cambaleiam, gaguejam é nesse sentido que na performance
o artista alcançar o inesperado nonsense do bêbado. É um movimento
despersonalizado, um movimento de mundo, na qual as coreografias se associam. A
última sequência do longa, o funeral do palhaço, na qual atesta a incongruência
da existência deste tipo de riso num mundo tão fissurado pelo sentido das
coisas. A sucessão de ações, conduzida pela velocidade rítmica, pelos zooms
inesperados, pelas elipses ocasionais que transformam o espetáculo tragicômico
do palhaço num eterno trem que em cada uma de suas janelas não deixa apresentar
intensidades, na qual o sentido pouco se cola.
No
seu filme, perguntam para Fellini o que gostaria de dizer com esse filme. Eis
que é impedido, pois bem, o significado não é o importante para o diretor, não
é o fim que lhe importa, mas sim as entradas, o impacto delas, a aura mágica
que movem o seu corpo de forma desconhecida. Nessa incursão abre entradas para
a sua memória, para a história e conceitos, para arqueologia e para o próprio
acontecimento da performance do palhaço.
Portanto,
produzido, a princípio para TV, Fellini produz uma obra curta, interessante,
que mistura o formato do documentário e da ficção de forma que se tornam
complementares em sua investigação, sempre mnemônica, mesmo que jornalística em
certo ponto. Assegurando o palhaço, aquele que ri e chora, como figura central
da construção muitos de seus personagens. Vale lembrar Gelsomina e Cabíria, na
qual Giulietta Masina sempre criava um tom burlesco cinematográfico aos
personagens, personagens que são pura intensidade.
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