segunda-feira, 7 de maio de 2018

2017 – Corpo e Alma (Ildikó Enyedi, Hungria) **** (4.0)


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Em tempos como o nosso, alguns chamam histórias de amor de escapismo, ainda mais aquelas na qual o onírico se faz presente, ou de certo uma zona utópica na qual certas coisas se tornam possíveis de simbolizar. Fellini sofreu com isso, sempre questionado, sempre advertido como pouco realista em comparação aos seus colegas de época. Enyedi, por sua vez, se aproxima do italiano na forma que busca expressar o amor de seus personagens, pois em tempos como os nossos, só no sonho o amor parece possível.
            
Bem seu filme consiste na história de amor entre dois personagens improváveis. Endre, interpretado por Géza Morcsányi, é o gerente de uma empresa de matadouro, um homem solitário, atento aos seus funcionários e que tem uma deficiência em um de seus braços, que permanece sempre imóvel. Mária, interpretada com uma grande sensibilidade por Alexandra Borbély, é a nova funcionária da empresa, ela administra o controle de qualidade, ela está dentro do espectro do autismo, o que não só acaba por torná-la facilmente obsessiva, assim como dificulta sua comunicação com qualquer um de seus colegas. Assim que ela chega na empresa, impressiona Endre. Mas com se comunicam? Ele cheio de inseguranças, ela impossibilita de se comunicar.
            
Existe uma contraposição de ambientes estabelecido pela montagem geral do filme. Entre o ambiente de trabalho dos dois, no qual tudo é extremamente liso, ascético, apenas sujando-se quando o sangue dos animais jorra por todos os cantos e a cenas no qual os dois cervos compartilham de um lago, num ambiente cheio de vida. São completamente distintos, enquanto um demonstra o estático ambiente-bolha, que não produz comunicação de fato e muito menos produz afeto, o outro, pela intimidade existente, pela conexão cheia de relevo com a natureza, demonstra a produção real do afeto.  Logo se percebe a conexão dos dois personagens a esse ambiente idílico, muito mais que representativo, o local é o de movimentação virtual dos afetos dos personagens. É um local com qual sonham, eles sonham juntos.
            
Por esse motivo cito Fellini, pois nessa perspectiva é como se houvesse de fato um inconsciente coletivo e o sonho não fosse mais um ambiente individualizado e fechado, mas sim compartilhado por uma série de sensações e forças que não expostas quando acordados. É importante ressaltar um coletivo, pois existe um teor de afetação que envolve no fim todos os personagens dentro da empresa, visto que uma substância usada para o acasalamento dos bovinos desaparece.
            
Enyedi é muito perspicaz ao uso de um formalismo em sua composição, ao enquadramento utilizado e às cores pastéis, que conseguem trazer o efeito sensorial de Mária. Pois ela apreende o mundo de forma distinta, portanto o role-play realizado com os bonecos, ou ainda a forma que organiza sua casa é de certo evidencia o cuidado com que se constrói essa personagem. Tendo como base uma economia visual, na qual é possível de se chamar minimalista, para construir um ambiente lógico e objetivo, ao mesmo tempo que espaçoso e solitário.

Ao mesmo tempo que se percebe como o envolvimento pouco a pouco com Endre vai se construindo e mudando um pouco, não sua condição, mas a forma com que lida com ela. Os sonhos passam do inverno ao verão, a fotografia vai deixando de ser fria e passa a ser quente, todo o aspecto sensorial se modifica em conjunto com essa personagem. Ela também modifica Endre, criando utilidade ao seu braço, exigindo a integralidade do sujeito.
            
Voltando a questão talvez mais icônica do filme é pensar esse lugar do sonho, do utópico não como impossível de se relacionar com real, mas sim em sua total impregnação na realidade. Veja bem, esse ambiente, essa zona, essa linha de fuga não é um escapismo, é uma forma de criar espaço e encontrar o amor, que aqui é uma forma de emancipação dos preconceitos sociais, das dores, do estigma de certos transtornos e deficiências. O sonho não deixa de existir, ele permanece com os personagens mesmo que exista uma efetuação daquilo que se encontra apenas no virtual.
            
Vencedor do Urso de Ouro, Corpo e Alma dialoga constantemente com essa proposta de sonho e realidade, imaterial e material, num diálogo imprescindível para pensarmos o mundo. Mesmo que seja uma singela história de amor e que aparentemente seja só isso, amar não é escapar, é desafiar-se, é desregular o regime vigente sobre seu corpo e o corpo do outro, é encontrar vida. Para Fellini e para Enyedi sonhar é também lutar pela vida, não existe nada mais intenso e desafiador que lutar pela vida.

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