
Em tempos como o nosso, alguns
chamam histórias de amor de escapismo, ainda mais aquelas na qual o onírico se
faz presente, ou de certo uma zona utópica na qual certas coisas se tornam
possíveis de simbolizar. Fellini sofreu com isso, sempre questionado, sempre
advertido como pouco realista em comparação aos seus colegas de época. Enyedi,
por sua vez, se aproxima do italiano na forma que busca expressar o amor de
seus personagens, pois em tempos como os nossos, só no sonho o amor parece
possível.
Bem
seu filme consiste na história de amor entre dois personagens improváveis.
Endre, interpretado por Géza Morcsányi, é o gerente de uma empresa de
matadouro, um homem solitário, atento aos seus funcionários e que tem uma
deficiência em um de seus braços, que permanece sempre imóvel. Mária,
interpretada com uma grande sensibilidade por Alexandra Borbély, é a nova
funcionária da empresa, ela administra o controle de qualidade, ela está dentro
do espectro do autismo, o que não só acaba por torná-la facilmente obsessiva,
assim como dificulta sua comunicação com qualquer um de seus colegas. Assim que
ela chega na empresa, impressiona Endre. Mas com se comunicam? Ele cheio de
inseguranças, ela impossibilita de se comunicar.
Existe
uma contraposição de ambientes estabelecido pela montagem geral do filme. Entre
o ambiente de trabalho dos dois, no qual tudo é extremamente liso, ascético,
apenas sujando-se quando o sangue dos animais jorra por todos os cantos e a
cenas no qual os dois cervos compartilham de um lago, num ambiente cheio de
vida. São completamente distintos, enquanto um demonstra o estático ambiente-bolha,
que não produz comunicação de fato e muito menos produz afeto, o outro, pela
intimidade existente, pela conexão cheia de relevo com a natureza, demonstra a
produção real do afeto. Logo se percebe
a conexão dos dois personagens a esse ambiente idílico, muito mais que
representativo, o local é o de movimentação virtual dos afetos dos personagens.
É um local com qual sonham, eles sonham juntos.
Por
esse motivo cito Fellini, pois nessa perspectiva é como se houvesse de fato um
inconsciente coletivo e o sonho não fosse mais um ambiente individualizado e
fechado, mas sim compartilhado por uma série de sensações e forças que não
expostas quando acordados. É importante ressaltar um coletivo, pois existe um
teor de afetação que envolve no fim todos os personagens dentro da empresa,
visto que uma substância usada para o acasalamento dos bovinos desaparece.
Enyedi
é muito perspicaz ao uso de um formalismo em sua composição, ao enquadramento
utilizado e às cores pastéis, que conseguem trazer o efeito sensorial de Mária.
Pois ela apreende o mundo de forma distinta, portanto o role-play realizado com
os bonecos, ou ainda a forma que organiza sua casa é de certo evidencia o
cuidado com que se constrói essa personagem. Tendo como base uma economia
visual, na qual é possível de se chamar minimalista, para construir um ambiente
lógico e objetivo, ao mesmo tempo que espaçoso e solitário.
Ao mesmo tempo que se percebe como o
envolvimento pouco a pouco com Endre vai se construindo e mudando um pouco, não
sua condição, mas a forma com que lida com ela. Os sonhos passam do inverno ao
verão, a fotografia vai deixando de ser fria e passa a ser quente, todo o
aspecto sensorial se modifica em conjunto com essa personagem. Ela também
modifica Endre, criando utilidade ao seu braço, exigindo a integralidade do
sujeito.
Voltando
a questão talvez mais icônica do filme é pensar esse lugar do sonho, do utópico
não como impossível de se relacionar com real, mas sim em sua total impregnação
na realidade. Veja bem, esse ambiente, essa zona, essa linha de fuga não é um
escapismo, é uma forma de criar espaço e encontrar o amor, que aqui é uma forma
de emancipação dos preconceitos sociais, das dores, do estigma de certos
transtornos e deficiências. O sonho não deixa de existir, ele permanece com os
personagens mesmo que exista uma efetuação daquilo que se encontra apenas no virtual.
Vencedor
do Urso de Ouro, Corpo e Alma dialoga constantemente com essa proposta de sonho
e realidade, imaterial e material, num diálogo imprescindível para pensarmos o
mundo. Mesmo que seja uma singela história de amor e que aparentemente seja só
isso, amar não é escapar, é desafiar-se, é desregular o regime vigente sobre
seu corpo e o corpo do outro, é encontrar vida. Para Fellini e para Enyedi
sonhar é também lutar pela vida, não existe nada mais intenso e desafiador que
lutar pela vida.
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