Eis que chegamos ao mais abstrato
e enigmático filme do diretor italiano, aquele que é um dos mais grandiosos,
extravagantes, nojentos, belos e loucos de todos os tempos. Satyricon é, nas
palavras do próprio diretor, uma ficção cientifica do passado, inspirada na
obra fragmentada de Petronius, de mesmo nome, na qual escreveu durante o
império de Nero em Roma. O que temos aqui é uma mistura de fantasia dramática e
sátira social, tudo isso imerso no onirismo cada vez mais barroco de Fellini.
Logo
em sua primeira sequência Fellini já demonstra o quanto vai produzir certos
anacronismos peculiares, na qual, uma longa parede de uma caverna apresenta
pinturas rupestres que facilmente se misturam com a pichação dos muros das
cidades urbanas. Na ponta esquerda um possível protagonista. Aparentemente esse
personagem, o jovial e romano Encolpio, busca, no ambiente que lembra o inferno,
seu amante, o ainda mais jovem e extremamente andrógeno Gitone, que havia sido
vendido por Ascilto, um grande amigo do protagonista. Jogados de cabeça nessa
situação confusa o que impressiona de fato nesse momento são as diversas
entradas imagéticas que o diretor consegue construir, é como se ele compusesse
um número indefinido de cenas bizarras, com o olhar oblíquo de personagens que
incomodam. Velhos, nus, gordos, com uma maquiagem exagerada, eles olham em
direção à câmera e o vento sopra junto com o movimento. Deleuze chama essa
forma de apresentação do acontecimento no espaço do diretor de apresentação em
alvéolo, na qual se geram bifurcações em nichos, camarotes, uma cena
cristalizada se apresenta e logo outra e outra, como um espetáculo.
A
história se desenvolve de forma fragmentada, é impossível delimitar se existe
ou não linearidade entre as pequenas seções que nos são apresentadas, meros
cortes simples diferenciam as sequências. É como uma torrente onírica que sugere
o próprio inconsciente coletivo em funcionamento, e digo esse termo pela
vontade do diretor de a partir dessas encenações míticas da cidade romana
produzir um aspecto histórico e cultural mudo que se encontra simbolizado pelas
narrativas. É como se buscasse nos estranhos hábitos dos romanos um paganismo
inerente ao seu corpo, por mais que em certo momento do filme se insira a
chegada de um cristianismo ascético, permanece inscrito no corpo de todo romano
o seu paganismo. Troca-se um pelo outro, permanece-se a decadência barroca por
qual Fellini é apaixonado. A cena do banquete, no qual o filósofo questiona o
imperador por ter roubado um aforismo de Lucrécio, é de um poder imenso. Existe
um grau de infinito na comida, na reverberação sexual dos convidados, na homossexualidade
pulsando nos corpos masculinos, na hermafrodita albina, nos sujeitos
degenerados, na violência gratuita, é como se tudo estive tensionado ao seu
limite.
Há um toque de
heroísmo romano em toda a narrativa, sempre Encolpico é desafiado a demonstrar
sua virilidade. Diferente das grandes narrativas de areia e sandália, os
clássicos de gladiadores que precederam o Spagetthi Western na Itália, aqui o
que vemos não é uma grandiosidade romantizada e sim opressora, nojenta e suada.
Ele sempre deve estar pronto tanto para a batalha quanto para o sexo, seja ele
heterossexual ou homossexual. Tanto que é um ponto narrativo importante aquele
no qual o personagem não consegue mais transar e consequentemente para de
lutar, como se entrasse numa terrível depressão.
É
preciso citar ainda a cena no barco, na qual uma grande criatura é levada ao
convés. Um monstro marinho pré-histórico, é o mesmo símbolo utilizado em A Doce
Vida da arraia encontrada à beira da praia. Símbolo do incompreensível, que
chega da imensidão inconsciente do mar, que leva e traz criaturas. Esses dois
filmes se assemelham, pois dialogam diretamente com o incompreensível, com a
decadência romana histórica e mítica. É nesse ponto que toda a obra de Fellini
começa a convergir seja pelos diversos caminhos e entradas que encontra. Sua imagem não diz uma coisa, expressa um
turbilhão de movimento vital, movimentos contrários que se diferenciam mais por
direção que oposições essenciais.
O
visual geral do filme contém uma grandiloquência em meio ao deserto romano, as
construções dos barcos, as vestimentas, as maquiagens parecem sempre uma
mistura anacrônica entre o novo e velho, o sujo e o limpo, é a ambiguidade de
sua imagem. Para além do design de produção, sua direção encontra-se motivada
pela narração em alvéolos como citada, porém é digno de nota como realiza tal
feito, por vezes com a montagem, porém mais eloquentemente com um veloz
movimento de câmera, um zoom incômodo, com olhares diretos para câmera ou
encenações espalhafatosas. Por mais que os personagens muitas vezes fiquem
apenas parados olhando o espectador, existe uma agonia em olhar para uma imagem
que parece imóvel, mas contém movimentos incessantes. A exuberância
especificamente barroca de Fellini reside no fato de sua imagem conter dobras e
mais dobras, sobreposições e mais sobreposições de um passado longínquo e
mítico em ressonância com o seu presente e seu futuro.
Por
fim, é importante dizer que a utilização do nome de Fellini no título é
considerada por muitos um atestado de que o diretor não pretendia adaptar a
obra por completo, afinal, repudia esse comportamento, e sim criar sua própria
obra em cima da leitura que fez. Satyricon é considerado por muitos um dos
piores filmes do diretor por ser confuso, abrupto, veloz, estranho, lento,
óbvio, ou seja, por ser uma incongruência em movimento. Contudo, estando num
movimento em busca deste buraco no sentido, é, portanto, uma jornada de
experiência e aprendizado.
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