domingo, 8 de outubro de 2017

1993 – M. Butterfly (David Cronenberg, Canadá, EUA & China) **** (4)

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Adaptação da peça premiada de mesmo nome, M. Butterfly segue por estilo bem distinto da maioria dos filmes do diretor até então, com certeza sendo um de seus filmes mais sutis, estilo que irá carregar consigo para o século XXI. O que não quer dizer que não existe um estudo sobre o corpo e a mente, sobre o desejo, o prazer, os grandes temas de sua filmografia. Narrando a história de Gallimard, um diplomata francês, que se apaixona por uma atriz chinesa após assisti-la na peça chamada Madame Butterfly.
            
Cronenberg conseguiu gravar algumas cenas em locação, trazendo um dos retratos menos pitorescos do país por um ocidental. Apesar disso, ainda houveram certos planos memoráveis, não perdendo a capacidade de produzir bem com uma ambientação menos estereotipada, assim como, certa atenção aos acontecimentos políticos da época, por exemplo, em uma cena que Gallimard retorna à França e o movimento de 68 está implodindo, extremamente influenciada pela leitura do livro vermelho de Mao. De qualquer forma, não é nesse fervor político que se insere e sim na intimidade, e principalmente na paixão do protagonista. Com o Jeremy Irons interpretando mais uma vez de forma bela e poderosa seu personagem num filme do diretor, quando assiste à peça existe certe magia real envolvendo a situação. O vislumbre que ele tem parece ter saído de um filme de David Lynch, porém com a estética chinesa. Song, que interpreta M. Butterfly, começa a construir um vínculo interessante com o francês, recheado de pensamento políticos, já que ela percebe a própria fetichização ocidental sobre as chinesas, ainda mais àquelas que se revestem em sua própria cultura, como ela. É a própria movimentação imperialista, como uma movimentação machista. Cronenberg não faz um grande suspense para revelar o ponto chave da relação dos dois, Song é um homem, um grande ator, um grande espião que parece roubar informações do diplomata, ao mesmo tempo que se entrega fortemente à relação.
            
Nesse relacionamento existe uma poderosa investigação do corpo, pois existe aqui um corpo transformado. Um homem torna-se mulher. A atuação contida de Song, com seus traços mais finos e seu corpo magro, pequeno, seus trejeitos, sua maneira de falar, etc. Como o Gallimard com todo seu intelectualismo, seu furor ocidental não percebe que está sendo enganado, pois desde o primeiro momento, ele se apaixonou por um fetiche imperialista. O protagonista da história explora um corpo criado, construído e completamente palpável, deixando-se levar cada vez mais pelos afetos e o pelo desejo. Song constrói M.Butterfly para continuar com o homem por quem se apaixonou, ele rearranja seu corpo para agradar a este homem, o modifica, o transforma. É possível notar como Gallimard é enganado com facilidade, Song resiste em mostrar seu corpo, o confundindo com a ideia estereotipada de que as mulheres chinesas são tímidas e conservadoras. Existe um diálogo interessante sobre o porquê dos atores da Opera de Pequim também representarem mulheres, o companheiro de Butterfly diz que é pelo fato de sistema reacionário reprimir a mulher e expulsá-la de espaços de destaque, talvez seja a resposta mais factual e com certeza mais política. Butterfly discorda dizendo que é por que só um homem sabe como uma mulher deve se portar. Mas o que ele quer dizer com isso? Bem, é simples, só um homem sabe o que um homem quer de uma mulher e assim Song conquista o homem imerso em suas fantasias.
            
A narrativa segue por caminhos cada vez mais trágicos e por vezes inverossímeis, porém que ressaltam onde se fundava a relação dos dois, principalmente num suposto amor incondicional do estrangeiro com a nativa, são papéis que podem se inverter como numa relação sexual. Existem muitas críticas severas a este filme por conta da inverosimilhança presente nos 20 anos que os dois passam juntos, porém, não é tão absurdo. Principalmente pelo fato de os dois mantarem um relacionamento escondido, que tinha poucos, mas intensos encontros.  A imersão na fantasia do protagonista e o amor incondicional que Song tinha também ajudariam a durar tanto tempo.
            
Um Cronenberg diferente, porém, com suas características mais autorais. A transformação dos corpos pelos afetos, pelo desejo, pela violência. Romântico, estranho, quase absurdo, mas poderoso. 

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