
Adaptação
da peça premiada de mesmo nome, M. Butterfly segue por estilo bem distinto da
maioria dos filmes do diretor até então, com certeza sendo um de seus filmes
mais sutis, estilo que irá carregar consigo para o século XXI. O que não quer
dizer que não existe um estudo sobre o corpo e a mente, sobre o desejo, o
prazer, os grandes temas de sua filmografia. Narrando a história de Gallimard,
um diplomata francês, que se apaixona por uma atriz chinesa após assisti-la na
peça chamada Madame Butterfly.
Cronenberg conseguiu gravar algumas
cenas em locação, trazendo um dos retratos menos pitorescos do país por um
ocidental. Apesar disso, ainda houveram certos planos memoráveis, não perdendo
a capacidade de produzir bem com uma ambientação menos estereotipada, assim
como, certa atenção aos acontecimentos políticos da época, por exemplo, em uma
cena que Gallimard retorna à França e o movimento de 68 está implodindo,
extremamente influenciada pela leitura do livro vermelho de Mao. De qualquer
forma, não é nesse fervor político que se insere e sim na intimidade, e
principalmente na paixão do protagonista. Com o Jeremy Irons interpretando mais
uma vez de forma bela e poderosa seu personagem num filme do diretor, quando
assiste à peça existe certe magia real envolvendo a situação. O vislumbre que
ele tem parece ter saído de um filme de David Lynch, porém com a estética
chinesa. Song, que interpreta M. Butterfly, começa a construir um vínculo
interessante com o francês, recheado de pensamento políticos, já que ela
percebe a própria fetichização ocidental sobre as chinesas, ainda mais àquelas
que se revestem em sua própria cultura, como ela. É a própria movimentação
imperialista, como uma movimentação machista. Cronenberg não faz um grande
suspense para revelar o ponto chave da relação dos dois, Song é um homem, um
grande ator, um grande espião que parece roubar informações do diplomata, ao
mesmo tempo que se entrega fortemente à relação.
Nesse relacionamento existe uma
poderosa investigação do corpo, pois existe aqui um corpo transformado. Um
homem torna-se mulher. A atuação contida de Song, com seus traços mais finos e
seu corpo magro, pequeno, seus trejeitos, sua maneira de falar, etc. Como o
Gallimard com todo seu intelectualismo, seu furor ocidental não percebe que
está sendo enganado, pois desde o primeiro momento, ele se apaixonou por um
fetiche imperialista. O protagonista da história explora um corpo criado,
construído e completamente palpável, deixando-se levar cada vez mais pelos
afetos e o pelo desejo. Song constrói M.Butterfly para continuar com o homem
por quem se apaixonou, ele rearranja seu corpo para agradar a este homem, o
modifica, o transforma. É possível notar como Gallimard é enganado com
facilidade, Song resiste em mostrar seu corpo, o confundindo com a ideia
estereotipada de que as mulheres chinesas são tímidas e conservadoras. Existe
um diálogo interessante sobre o porquê dos atores da Opera de Pequim também
representarem mulheres, o companheiro de Butterfly diz que é pelo fato de
sistema reacionário reprimir a mulher e expulsá-la de espaços de destaque,
talvez seja a resposta mais factual e com certeza mais política. Butterfly
discorda dizendo que é por que só um homem sabe como uma mulher deve se portar.
Mas o que ele quer dizer com isso? Bem, é simples, só um homem sabe o que um
homem quer de uma mulher e assim Song conquista o homem imerso em suas
fantasias.
A narrativa segue por caminhos cada
vez mais trágicos e por vezes inverossímeis, porém que ressaltam onde se
fundava a relação dos dois, principalmente num suposto amor incondicional do
estrangeiro com a nativa, são papéis que podem se inverter como numa relação
sexual. Existem muitas críticas severas a este filme por conta da
inverosimilhança presente nos 20 anos que os dois passam juntos, porém, não é
tão absurdo. Principalmente pelo fato de os dois mantarem um relacionamento
escondido, que tinha poucos, mas intensos encontros. A imersão na fantasia do protagonista e o
amor incondicional que Song tinha também ajudariam a durar tanto tempo.
Um Cronenberg diferente, porém, com
suas características mais autorais. A transformação dos corpos pelos afetos,
pelo desejo, pela violência. Romântico, estranho, quase absurdo, mas poderoso.
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