segunda-feira, 9 de outubro de 2017

1996 – Crash (David Cronenberg, Canadá & EUA) ****1/2

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Crash é baseado num conto de J.G. Ballard, duas mentes extremamente conturbadas e com estéticas muito viscerais. Cronenberg nesta adaptação produz um filme estranhamente sensual e doentio, onde o homem e máquina exploram seus limites e se tornam um só. Narrando a história de James Ballard, um produtor de cinema que após um acidente de carro, se vê completamente excitado por acidentes de carros.
            
É necessário ressaltar a busca incessante de prazer do protagonista e de sua companheira. Os dois já iniciam o filme transando com pessoas diferentes, um provável relacionamento aberto e, também, já demonstrando certo prazer às máquinas, já que sua parceira, Catherine, interpretada por Deborah Kara Unger, transa com um homem ao tocar em aviões. Nesta cena em especifico, ela nem sequer olha para o homem com quem transava, obsessivamente alisava o avião. Já James, interpretado de forma marcante por James Spader, transa com a fotógrafa de sua produtora na sua sala, durante as gravações. Vale ressaltar que ela é asiática, o que talvez seja um sintoma de M. Butterfly, seu filme anterior que constrói fortes comentários sobre o fetichismo do imperialismo machista. Portanto, seu protagonista vivencia uma intensa busca de prazer, organizando os agenciamentos para que o seu gozo surja, sempre percorrendo um potencial de excitabilidade em total indiscernibilidade com a tensão.  A história fica mais interessante ao explorar um grupo de pessoas viciadas em acidentes de carros, reconstruindo acidentes famosos, de forma que o limiar da vida e da morte não seja nada perante ao prazer adquirido nessas experiências.
            
Outros personagens são introduzidos no grupo, a médica interpretada por Holly Hunter, que mesmo após seu carro colidir com o de James e seu marido morrer no acidente não consegue fugir desse sintoma, suas paixões são completamente guiadas por seus desejos. Vaughn, interpretado por Elias Koteas, o líder do culto de prazer às máquinas, ele acaba sendo um verdadeiro profeta da obra Cronenberguiana e parece demarcar as principais mudanças na perspectiva estética do autor. De primeira é possível notar neste personagem e seus companheiros, deformações no corpo causadas pelos acidentes no qual participaram, Vaughn ainda afirma que gostaria de documentar a remodelação do corpo humana por conta da tecnologia moderna (algo que Cronenberg já havia sugerido com Videodrome), por isso tatua pedaços de automóveis em seu corpo com um alto grau de excitação. Esse momento, que parece simples, compreende um sutil diálogo entre ele e a médica que desenha as tatuagens no seu corpo (uma médica por conta de todas as suas cicatrizes), no qual ele diz que é uma profecia e por isso deveria ser um desenho sujo, enquanto ela diz que é impossível por se tratar de tatuagem médica. É como se Cronenberg nos seus filmes mais recentes, que são claramente mais limpos e menos nojentos que os do século passado, estivesse se apropriando de sua análise com um olhar com mais clareza, buscando uma cientificidade talvez, para além do profético, do ocultista, do experimentador.
            
Essa poderosa mistura do corpo do homem com seus objetos de acoplamento é construída não só pelas semelhantes destruições com quais as máquinas e os homens passam, expressando-se em cicatrizes que se repetem nas diferentes extensões. Mas também, por uma cena ainda mais marcante, na qual o carro de James atravessa as esponjas, panos e produtos químicos de um lava-jato, enquanto Vaughn transa de forma rude com Catherine. Usando da montagem que produz uma poesia absurda e dolorosa entre as imagens do carro em contato com os outros objetos do lava-jato, como se estivesse sendo estimulado, em composição com o rosto abismado de James e a realização do sexo duro, como se fossem máquinas, máquinas enferrujadas. Este filme é uma verdadeira obra doentia que explora os limites de um corpo, nunca chegando nele, fazendo o espectador adentrar na incursão de seus personagens.
            
O diretor ainda parece querer, a partir do texto de Ballard, porém em menor grau, fazer algum comentário com a efemeridade do que desejamos, com a própria vida humana quando não se pensa nas consequências de seus atos, mas não é algo que se tornar muito evidente. Por fim, este é um dos filmes mais impressionantes do diretor, um dos mais estranhos e sem necessariamente precisar da nojeira usual de seus filmes anteriores (o que não os tornam menor, na verdade, visualmente são até mais poderosas, existe apenas uma mudança de abordagem do diretor em relação ao seu próprio objeto de produção), de forma limpa e quase cirúrgica, expressa a maneira com qual os corpos se misturam e a maneira que o desejo guia os seres humanos. 

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