sábado, 14 de outubro de 2017

2002 – Spider (David Cronenberg, Canadá & Inglaterra) ****1/2 (4.5)

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Seu primeiro filme realizado no século XXI, já impondo a visão supostamente mais limpa, Cronenberg constrói um belo filme sobre a esquizofrenia, no qual não existe nenhuma narrativa grandiloquente ou honrosa, apenas um homem e seus próprios demônios. Ralph Fiennes protagoniza o filme como Spider, um homem que acaba de ser mudar para um manicômio de meia estadia em sua antiga cidade, lugar no qual consegue explorar suas memórias e entender como tudo foi acontecer.
            
Deve-se fazer uma pequena incursão sobre a visão da esquizofrenia para a psicanálise, pois esta costuma dizer muito sobre os filmes do diretor. Nesta abordagem psicológica, fala-se muito sobre como o inconsciente é estruturado em linguagem, pois é assim que existe a inserção do sujeito no social. O fenômeno que produz tal ação é o Complexo Édipo. Sim, utilizando do personagem da peça de Sófocles, a até hoje mal falada, assim como sujeita a críticas construtivas, teoria de que o filho se apaixona pela mãe (ou de forma uma pouco menos eufemística, tem desejo sexual investido para a figura materna), mas tudo isso são símbolos de um processo de inserção social. A figura materna, quem produz a função materna (que não necessariamente é a mãe, ou uma mulher) é quem introduz o bebê à linguagem, por ser alienado pela mesma, o bebê acaba, consequentemente, investindo seu desejo sexual nesta figura para que se insira na linguagem, logo existe um outro processo de separação que é a do entendimento que o incesto não pode ocorrer, feito pela função paterna (não necessariamente o pai, ou um homem, ou sequer uma pessoa). Esta última é o que o insere completamente na cultura vigente, pois é a forma que as regras sociais mais primordiais são inseridas e muitas vezes encarnadas. Ao fim do complexo de édipo, o sujeito adquire a estrutura neurótica, que é a mais comum e a possível para um convívio social. A esquizofrenia seria a afecção somática da psicose, em que o sujeito não é inserido na linguagem e se expressa fora dela, ou seja, cria uma língua estrangeira com o lhe foi oferecido da linguagem. Lacan e outros pós-freudianos trazem a concepção de que a esquizofrenia se expressa no Real, este último conceito diz daquilo que é imanente e não é possível de nomear, ou seja, aquilo que não consegue produzir sentido (ou seja, não se faz linguagem).
            
Portanto, o que pode ocorrer na vida de uma pessoa para que a mesma adquira a esquizofrenia, claro, sem falar da carga genética que é um propulsor, é que exista algum acontecimento forte o suficiente na vida do sujeito para que o mesmo não consiga significá-lo. Sabendo disso, quando o diretor resolve seguir os passos do personagem de maneira fragmentada, ao mesmo tempo que relata o seu passado, o diretor fazia uma análise psicológica dos sintomas de seu paciente (fragmentação, delírios e alucinações), assim como buscava entender a origem dos mesmos em sua vida, numa busca arqueológica (no filme promovida pelo próprio personagem). Dessa forma, sua proposta estética consegue ser intrigante e forte com a ajuda do seu ator principal, poucos atores que fizeram personagens psicóticos foram tão imersos no seu papel quanto Ralph Fiennes, seu olhar perturbado, seu balbuciar, sua escrita desconcertante, anotações de uma memória em pedaços. Cronenberg poeticamente demonstra sua situação em imagens, vagando nas ruas passa por uma ambientação estranha, onde as janelas e portas são pintadas e não existem de verdade, preso sem poder sair, qualquer lugar que aponte uma saída é falso, tudo se torna um muro. Em suas memórias, o jovem Spider brinca com os fios em seu quarto, enquanto assiste à relação de seus pais desmoronar, por conta de um caso extraconjugal com uma prostituta e com a bebida. Mais uma vez o diretor posiciona pequenos símbolos e certas sugestões na mente do espectador, porém sempre fragmentadas, tentando compreender a história de seu personagem ao lado dele.
            
Talvez um dos momentos mais interessantes do filme seja metáfora construída pela montagem do todo do filme. Spider passa grande parte do tempo no manicômio tentando montar um quebra-cabeça gigantesco e em outro momento ele entrega um caco que faltava à uma placa de vidro. É como se o tempo todo, em todos os lugares, ele precisasse juntar as peças para que não se perca. Essa proposta de narrar tanto o momento atual do personagem, quanto seu passado acabam construindo um possível loop no qual por conta de sua triste condição o torna imerso numa mesma ação repetidas vezes. Não conseguindo simbolizar a situação sempre parece chegar a um limiar onde não pode prosseguir na elaboração, não pode aceitar e com isto não pode continuar num processo de melhora.
            
Como já havia dito em Crash, o diretor não deixou sua proposta estética morrer, ainda explora o corpo, a mente, os limites e as relações entre eles. Agora, todavia, se expressa com uma certa limpeza clínica, não mais num laboratório de experimentos onde os corpos se destruíam, se misturavam, o que não quer dizer não sofram. O corpo ainda é filmado com uma intensidade Cronenberguiana, as suas afecções ainda são expressas pelo paralelismo da mente e do corpo. 

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