
Eis um filme mal-entendido do
diretor, por mais que do ponto de vista crítico tenha sido até bem comentado, e
pelo menos, atualmente, parece ser bem agraciados pelos amantes de Fellini, em
seu lançamento foi o primeiro passo do diretor italiano em direção ao onirismo
rachado, com aquele exposto com maestria em 8 ½. Foi o primeiro passo ao
absurdo das imagens estrondosas e sem sentido do diretor, digo sem sentido não
porque é inócua, mas sim porque o sentido desliza nas imagens compostas com
tamanha estranheza. Pois bem, essa é a história de Julieta, uma mulher que vive
bem, numa casa idílica, com seu marido rico, que não lhe dá atenção. Após uma
sessão espírita com as amigas, ela passa a ver espíritos a todo o momento e
desconfia da traição do marido.
Logo
em sua primeira cena vemos a eloquência misteriosa com qual Fellini resolve
abordar essa personagem, a câmera move-se de um lado a outro, capturando
Julieta sempre de costas, de relance, nos espelhos, saindo e entrando no
enquadramento, porém nunca vemos seu rosto. Logo, a pequena festa para qual se
arruma desenvolve-se na citada sessão espirita, aí o poder sensorial do diretor
se faz presente, seja o jogo de sombra e fumaça, os close-ups nos rostos
sombreados e principalmente o uso do sonoro, com os grilos que ressaltam o
silêncio e o som do telefone que surge como efeito fantasmagórico. Porém, acima
de qualquer outro filme o vento aqui é sutil e persistente, parece que a todo
momento ele se faz presente ao fundo no som, como se procurasse demonstrar a
presença de algo de forma ininterrupta, daquilo que se esconde por baixo dos
panos, talvez do estado consciente ou do mundo dos vivos. “ O ar é cheio de
vozes dando ordens”. Neste longa, existe uma relação inevitável entre o
espiritual que é suscitado em Julieta e o inconsciente, e digo aqui o
inconsciente de Jung com suas simbologias histórico-mundiais e arquétipos que
se repetem com todo o revestimento onírico.
É
interessante fazer essa distinção, pois o próprio Fellini dizia que Jung e
Freud pensavam o símbolo de forma diferente. Enquanto o Freud pensava o símbolo
como objeto que esconde aquilo que não se pode entender, Jung entendia como a
forma encontrada para exprimir aquilo que não se pode entender. Sendo assim compreende-se melhor as figuras
praticamente incompreensíveis, velozes e absurdas que habitam o imaginário
Felliniano. Uma das primeiras grandes sequências assim é na praia, quando
Julieta rapidamente vê um grupo de sujeitos claramente de outros tempos,
carregando espadas e objetos danosos, com cavalos esqueléticos, enquanto sua
voz apenas ressoa sussurrante. Parece que em todos esses símbolos as
interpretações estão abertas, principalmente essas figuras helénicas, quase
mitológicas que surgem do mar, das profundezas. Pouco a pouco vai tornando-se
indiscernível o que são apenas fantasias espirituais da personagem e o que de
fato é realidade. Existe uma estranheza geral com o visual do diretor nesse
filme. Tudo parece vivo, todos os objetos e cenários, afinal é o primeiro filme
em cores de Fellini.
Primeiramente,
as roupas são surrealistas por si só, trazendo aquele modernismo do mundo da
moda dos anos 60, cheio de cores fortes, por vezes monocromáticas e com designs
pouco usuais. Todos se vestem dessa forma estranha. Julieta inicia o longa com
roupas brancas ou pretas. Ao conhecer Suzy, é notável como se veste em vermelho
e a devolve um gato preto, que logo é enviado embora. Ao ganhar suas cores
surge o momento de experimentação maior para a personagem, até sexual e
mnemônica, até retornar as cores habituais. Essa nova amiga da protagonista é
interpretada pela grandiosa Sandra Milo, que esboça uma loucura que escorre
pelo seu sorriso a todo momento, sempre vestindo roupas estranhas, além de sua
casa ser cheia de utensílios completamente criativos. Esse é apenas um dos
encontros de Julieta dentre vários que a modificam, o espirito que possuí o corpo
do guru, os detetives que querem descobrir se seu marido a trai e
principalmente o reencontro com sua memória.
A
atuação de Giulietta Masina sempre é estrondosa, criando mais uma personagem
marcante, com Gelsomina ou ainda Cabíria. Julieta não fica mais para traz com o
mesmo sorriso agridoce, o mesmo olhar terno. Sem ela talvez a força impactante que
carrega no seu andar não fossem a mesma. Julieta ao se tocar pela espirito
Iris, relembra de seu passado de forma tão intensa que seus fantasmas são suas
memórias que a aprisionam numa zona de repetição iminente. Próximo do fim do
filme, a forma que Fellini monta as cenas como um pesadelo, cada plano é uma
composição de uma pintura, todos os espíritos olham diretamente para o público,
a câmera se movimenta por entre os rostos monstruosos, disformes e agoniantes.
Nesses momentos é que o diretor impressiona pela energia mística que consegue
remexer os medos inconscientes do espectador.
Para
aqueles que costumam de dizer que por ser um sonhador Fellini seria um
escapista estão muito enganados. A todo momento que o sonho surge no diretor é
por certo medo do incompreensível, aliás, o espetáculo, o sonho, a vida são os
grandes temas do diretor por conta desse incompreensível e possivelmente
inominável que arrebata com seus sentimentos. Fellini produz vida com a quebra
do sentido. A vida demonstra sua força nessa impossibilidade de ser totalizada
pelo sentido e é isso que o diretor vê em suas figuras simbólicas, por mais que
sejam passíveis à interpretação. Elas sempre são impulsos barrocos do mistério
daquilo que não se compreende.
Portanto,
Julieta dos Espíritos é um grande filme do diretor, o mesmo olhar com ternura
para com seus personagens. Dando um passo a mais em explorar esse
incompreensível que sempre pairou sobre todos os seus filmes anteriores por
meios dos espetáculos e das ilusões cotidianas.
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