sexta-feira, 20 de abril de 2018

1965 – Julieta dos Espíritos (Federico Fellini, Itália) ****1/2 (4.5)


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Eis um filme mal-entendido do diretor, por mais que do ponto de vista crítico tenha sido até bem comentado, e pelo menos, atualmente, parece ser bem agraciados pelos amantes de Fellini, em seu lançamento foi o primeiro passo do diretor italiano em direção ao onirismo rachado, com aquele exposto com maestria em 8 ½. Foi o primeiro passo ao absurdo das imagens estrondosas e sem sentido do diretor, digo sem sentido não porque é inócua, mas sim porque o sentido desliza nas imagens compostas com tamanha estranheza. Pois bem, essa é a história de Julieta, uma mulher que vive bem, numa casa idílica, com seu marido rico, que não lhe dá atenção. Após uma sessão espírita com as amigas, ela passa a ver espíritos a todo o momento e desconfia da traição do marido.
            
Logo em sua primeira cena vemos a eloquência misteriosa com qual Fellini resolve abordar essa personagem, a câmera move-se de um lado a outro, capturando Julieta sempre de costas, de relance, nos espelhos, saindo e entrando no enquadramento, porém nunca vemos seu rosto. Logo, a pequena festa para qual se arruma desenvolve-se na citada sessão espirita, aí o poder sensorial do diretor se faz presente, seja o jogo de sombra e fumaça, os close-ups nos rostos sombreados e principalmente o uso do sonoro, com os grilos que ressaltam o silêncio e o som do telefone que surge como efeito fantasmagórico. Porém, acima de qualquer outro filme o vento aqui é sutil e persistente, parece que a todo momento ele se faz presente ao fundo no som, como se procurasse demonstrar a presença de algo de forma ininterrupta, daquilo que se esconde por baixo dos panos, talvez do estado consciente ou do mundo dos vivos. “ O ar é cheio de vozes dando ordens”. Neste longa, existe uma relação inevitável entre o espiritual que é suscitado em Julieta e o inconsciente, e digo aqui o inconsciente de Jung com suas simbologias histórico-mundiais e arquétipos que se repetem com todo o revestimento onírico.
            
É interessante fazer essa distinção, pois o próprio Fellini dizia que Jung e Freud pensavam o símbolo de forma diferente. Enquanto o Freud pensava o símbolo como objeto que esconde aquilo que não se pode entender, Jung entendia como a forma encontrada para exprimir aquilo que não se pode entender.  Sendo assim compreende-se melhor as figuras praticamente incompreensíveis, velozes e absurdas que habitam o imaginário Felliniano. Uma das primeiras grandes sequências assim é na praia, quando Julieta rapidamente vê um grupo de sujeitos claramente de outros tempos, carregando espadas e objetos danosos, com cavalos esqueléticos, enquanto sua voz apenas ressoa sussurrante. Parece que em todos esses símbolos as interpretações estão abertas, principalmente essas figuras helénicas, quase mitológicas que surgem do mar, das profundezas. Pouco a pouco vai tornando-se indiscernível o que são apenas fantasias espirituais da personagem e o que de fato é realidade. Existe uma estranheza geral com o visual do diretor nesse filme. Tudo parece vivo, todos os objetos e cenários, afinal é o primeiro filme em cores de Fellini.
            
Primeiramente, as roupas são surrealistas por si só, trazendo aquele modernismo do mundo da moda dos anos 60, cheio de cores fortes, por vezes monocromáticas e com designs pouco usuais. Todos se vestem dessa forma estranha. Julieta inicia o longa com roupas brancas ou pretas. Ao conhecer Suzy, é notável como se veste em vermelho e a devolve um gato preto, que logo é enviado embora. Ao ganhar suas cores surge o momento de experimentação maior para a personagem, até sexual e mnemônica, até retornar as cores habituais. Essa nova amiga da protagonista é interpretada pela grandiosa Sandra Milo, que esboça uma loucura que escorre pelo seu sorriso a todo momento, sempre vestindo roupas estranhas, além de sua casa ser cheia de utensílios completamente criativos. Esse é apenas um dos encontros de Julieta dentre vários que a modificam, o espirito que possuí o corpo do guru, os detetives que querem descobrir se seu marido a trai e principalmente o reencontro com sua memória.
            
A atuação de Giulietta Masina sempre é estrondosa, criando mais uma personagem marcante, com Gelsomina ou ainda Cabíria. Julieta não fica mais para traz com o mesmo sorriso agridoce, o mesmo olhar terno. Sem ela talvez a força impactante que carrega no seu andar não fossem a mesma. Julieta ao se tocar pela espirito Iris, relembra de seu passado de forma tão intensa que seus fantasmas são suas memórias que a aprisionam numa zona de repetição iminente. Próximo do fim do filme, a forma que Fellini monta as cenas como um pesadelo, cada plano é uma composição de uma pintura, todos os espíritos olham diretamente para o público, a câmera se movimenta por entre os rostos monstruosos, disformes e agoniantes. Nesses momentos é que o diretor impressiona pela energia mística que consegue remexer os medos inconscientes do espectador.
            
Para aqueles que costumam de dizer que por ser um sonhador Fellini seria um escapista estão muito enganados. A todo momento que o sonho surge no diretor é por certo medo do incompreensível, aliás, o espetáculo, o sonho, a vida são os grandes temas do diretor por conta desse incompreensível e possivelmente inominável que arrebata com seus sentimentos. Fellini produz vida com a quebra do sentido. A vida demonstra sua força nessa impossibilidade de ser totalizada pelo sentido e é isso que o diretor vê em suas figuras simbólicas, por mais que sejam passíveis à interpretação. Elas sempre são impulsos barrocos do mistério daquilo que não se compreende.
            
Portanto, Julieta dos Espíritos é um grande filme do diretor, o mesmo olhar com ternura para com seus personagens. Dando um passo a mais em explorar esse incompreensível que sempre pairou sobre todos os seus filmes anteriores por meios dos espetáculos e das ilusões cotidianas.

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