
Dee
Rees produziu uma obra que para muitos é mais um filme que fala sobre a triste
situação da população negra americana no passado, porém sua obra dialoga com um
tipo de forma clássica que desafia e tenciona a expressão desse tema. Muito
mais que um tema, ela constrói um emaranhado de discursos de seus personagens,
como se conseguisse expressar com muita força o peso da existência de cada um
deles. Narrando a história de duas famílias durante os anos da segunda guerra
mundial.
É possível colocar a forma clássica
no qual o longa se introduz próximo ao melodrama de John Ford, no qual a terra
rodeia o homem e expõe todas as suas formas de relação com o mundo. Além, é
claro, dos filmes de Terrence Malick, em que o fluxo de consciência dos
personagens tomam conta do discurso fílmico e expõe com certa poesia da palavra
os diversos pontos de vista sobre as mesmas imagens. Essa conjunção é poderosa
quando se foca no racismo exposto num modelo tão próximo à grandes nomes do
cinema americano, além de ter sido produzido por uma mulher negra nos tempos de
Donald Trump. Ela subverte a forma clássica impondo o fluxo de consciência que
remete a Malick, mas muito mais que isso, constrói algo próprio ao fechar sua
narrativa nos tons trágicos do melodrama e apenas fazer crescer pelos discursos
pelo fluxo de consciência. Deixando mais claro, Malick faz de sua narrativa
completamente pelo fluxo de consciência imagético e discursivo, já Dee Rees
impõe um encadeamento de imagens mais próximo do melodrama, por mais que
contenha uma poesia salientada pela expressão do pensamento de seus
personagens.
Só essa proposta estética já
impressiona, mas além disso, os personagens construídos são de uma vivacidade,
de um primor de detalhe que impressionam. O discurso em voice-over produz mais
texturas a eles, assim como as performances. A família branca, McAllen, contém
quatro personagens como foco, Laura, interpretada por Carey Mulligan com uma
potência em seus gestos; Henry, interpretado com um olhar cansado de Jason
Clarke, marido de Laura, que a leva da cidade para o campo em busca um negócio
próprio, sempre buscando agradar o pai; Jaime, interpretado com desenvoltura
por Garrett Hedlund, seu irmão mais novo que é obrigado a servir na guerra e lá
se destrói pouco a pouco; por fim, Pappy, interpretado por Jonathan Banks, o
patriarca extremamente racista, severo em todos os aspectos, mas ao mesmo tempo
um homem enrijecido pela idade.
Do outro lado, a família Jackson, Hap, interpretado por Rob
Morgan, carregando um semblante muito mais abatido que o de Henry, um pastor
que acredita que o seu povo não deve mais servir aos brancos, pois a escravidão
acabou e que reza todos os dias para que seu filho volte da guerra; Florence,
interpretada por Mary J. Blige, em nenhum momento deixa sua fraqueza
transparecer, além de ser uma grande sábia do cuidado, ela desenvolve um forte
relação com Laura; e Ronsel, interpretado por Jason Mitchel, em uma performance
encantadora, seja seu sorriso de nervoso, ou seu olhar de dor para com o que
pode perder, para com o sofrimento de seus pais. Ele é o filho mais velho que
foi para guerra e ao voltar desenvolve uma amizade com Jaime.
São muitos personagens, por isso, é
melhor analisar eles em suas relações. Primeira relação que o filme estabelece
é a da família McAllen. Laura e Henry, se casam muito mais por necessidade que
qualquer coisa, porém por conta da própria educação de Laura, ela se vê
encantada pelos esforços de Henry em ser esse homem, o marido, o patriarca.
Jaime surge como o real desejo dela, desde sua aparição, pois ele não a encanta
pelo esforço que faz e sim pelo que simplesmente é, sua ida à guerra os
afastou. Quando o casal e Pappy resolvem ir para o campo e são enganados, sendo
obrigado a viver nas terras de ninguém, próximo aonde a família Jackson vivia,
percebe-se a severidade do verdadeiro patriarca dos McAllen. Ele demonstra com
toda sua força o desprezo que tem pelo seu filho, o considerando um homem
fraco. Essa sobrecarga em Henry acaba por, aos poucos, destruir a relação dele
com Laura, que teve que aprender a se tornar uma mãe e uma dona de casa, num
ambiente incomum, rapidamente. Tanto ela, quanto Henry não estão acostumados
com essas adversidades do campo. É aí que se introduz a família Jackson.
Enquanto Ronsel vai para guerra. Hop
sente-se obrigado a fazer certos serviços para Henry, sem nunca desenvolver
afeição pelo suposto patrão, obviamente porque a relação se submete ao modelo
escravocrata. Além disso, a relação de Florence e Luara se constrói, por conta
do adoecimento das filhas da família McAllen. Ao mesmo tempo que existe uma dor
na relação delas duas já que uma tem que deixar seus filhos para cuidar dos
filhos dos outros, a outra se incomoda com sua suposta ineficácia materna. Mas
a grande relação que se dá no filme é a intensa amizade entre Ronsel e Jaime,
quando retornam da guerra. Os dois vivenciaram coisas na qual não gostariam de
voltar a ver nunca mais, é nesse momento que o título em inglês faz mais seu
sentido. Mudbound significa laços da lama, os dois estiveram no mesmo abismo da
guerra, ao mesmo tempo que compartilham do sofrimento na mesma terra. Porém, é
uma amizade incômoda para Pappy e os olhares dos brancos. Para Ronsel, na
Europa, por mais que estivesse em guerra, lá ele era visto como um herói de
guerra, de volta para o Mississipi era um homem rejeitado.
Dee Rees utiliza de planos que priorizam close-ups, para
que a emoção das personagens seja bem exposta, porém quando ela abre o
enquadramento e faz os sujeitos se confrontarem com a terra, com a lama que os
conecta é que se ganha força todo o seu processo de subversão do melodrama
clássico. Rachel Morrison, ao realizar a fotografia, conseguia criar uma
estética que não só traz as cores de uma época, mas também salientam a sujeira
e o suor dos personagens. Aliás, a montagem contém uma fluidez entre
narrativas, entre pontos de vista, entre personagens que é precisa, combinando
com os voice-overs de forma que os intensificam.
Mudbound emociona e se torna um
melodrama dos tempos contemporâneos não só pela necessidade de um novo olhar
sobre o melodrama, mas simplesmente pela força trágica e estética que a direção
de Dee Rees se faz. Com um elenco impressionante, ressaltando as atuações de
Carey Mulligan, Mary J. Blige e Jason Mitchell. Esse filme expressa que todos os
americanos estão unidos, queiram ou não queiram, pela lama que cobre seus
pés.
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