sábado, 14 de abril de 2018

2017 – Lágrimas Sobre o Mississipi (Dee Rees, EUA) ****1/2 (4.5)


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Dee Rees produziu uma obra que para muitos é mais um filme que fala sobre a triste situação da população negra americana no passado, porém sua obra dialoga com um tipo de forma clássica que desafia e tenciona a expressão desse tema. Muito mais que um tema, ela constrói um emaranhado de discursos de seus personagens, como se conseguisse expressar com muita força o peso da existência de cada um deles. Narrando a história de duas famílias durante os anos da segunda guerra mundial.
            
É possível colocar a forma clássica no qual o longa se introduz próximo ao melodrama de John Ford, no qual a terra rodeia o homem e expõe todas as suas formas de relação com o mundo. Além, é claro, dos filmes de Terrence Malick, em que o fluxo de consciência dos personagens tomam conta do discurso fílmico e expõe com certa poesia da palavra os diversos pontos de vista sobre as mesmas imagens. Essa conjunção é poderosa quando se foca no racismo exposto num modelo tão próximo à grandes nomes do cinema americano, além de ter sido produzido por uma mulher negra nos tempos de Donald Trump. Ela subverte a forma clássica impondo o fluxo de consciência que remete a Malick, mas muito mais que isso, constrói algo próprio ao fechar sua narrativa nos tons trágicos do melodrama e apenas fazer crescer pelos discursos pelo fluxo de consciência. Deixando mais claro, Malick faz de sua narrativa completamente pelo fluxo de consciência imagético e discursivo, já Dee Rees impõe um encadeamento de imagens mais próximo do melodrama, por mais que contenha uma poesia salientada pela expressão do pensamento de seus personagens.  
            
Só essa proposta estética já impressiona, mas além disso, os personagens construídos são de uma vivacidade, de um primor de detalhe que impressionam. O discurso em voice-over produz mais texturas a eles, assim como as performances. A família branca, McAllen, contém quatro personagens como foco, Laura, interpretada por Carey Mulligan com uma potência em seus gestos; Henry, interpretado com um olhar cansado de Jason Clarke, marido de Laura, que a leva da cidade para o campo em busca um negócio próprio, sempre buscando agradar o pai; Jaime, interpretado com desenvoltura por Garrett Hedlund, seu irmão mais novo que é obrigado a servir na guerra e lá se destrói pouco a pouco; por fim, Pappy, interpretado por Jonathan Banks, o patriarca extremamente racista, severo em todos os aspectos, mas ao mesmo tempo um homem enrijecido pela idade.

Do outro lado, a família Jackson, Hap, interpretado por Rob Morgan, carregando um semblante muito mais abatido que o de Henry, um pastor que acredita que o seu povo não deve mais servir aos brancos, pois a escravidão acabou e que reza todos os dias para que seu filho volte da guerra; Florence, interpretada por Mary J. Blige, em nenhum momento deixa sua fraqueza transparecer, além de ser uma grande sábia do cuidado, ela desenvolve um forte relação com Laura; e Ronsel, interpretado por Jason Mitchel, em uma performance encantadora, seja seu sorriso de nervoso, ou seu olhar de dor para com o que pode perder, para com o sofrimento de seus pais. Ele é o filho mais velho que foi para guerra e ao voltar desenvolve uma amizade com Jaime.
            
São muitos personagens, por isso, é melhor analisar eles em suas relações. Primeira relação que o filme estabelece é a da família McAllen. Laura e Henry, se casam muito mais por necessidade que qualquer coisa, porém por conta da própria educação de Laura, ela se vê encantada pelos esforços de Henry em ser esse homem, o marido, o patriarca. Jaime surge como o real desejo dela, desde sua aparição, pois ele não a encanta pelo esforço que faz e sim pelo que simplesmente é, sua ida à guerra os afastou. Quando o casal e Pappy resolvem ir para o campo e são enganados, sendo obrigado a viver nas terras de ninguém, próximo aonde a família Jackson vivia, percebe-se a severidade do verdadeiro patriarca dos McAllen. Ele demonstra com toda sua força o desprezo que tem pelo seu filho, o considerando um homem fraco. Essa sobrecarga em Henry acaba por, aos poucos, destruir a relação dele com Laura, que teve que aprender a se tornar uma mãe e uma dona de casa, num ambiente incomum, rapidamente. Tanto ela, quanto Henry não estão acostumados com essas adversidades do campo. É aí que se introduz a família Jackson.
            
Enquanto Ronsel vai para guerra. Hop sente-se obrigado a fazer certos serviços para Henry, sem nunca desenvolver afeição pelo suposto patrão, obviamente porque a relação se submete ao modelo escravocrata. Além disso, a relação de Florence e Luara se constrói, por conta do adoecimento das filhas da família McAllen. Ao mesmo tempo que existe uma dor na relação delas duas já que uma tem que deixar seus filhos para cuidar dos filhos dos outros, a outra se incomoda com sua suposta ineficácia materna. Mas a grande relação que se dá no filme é a intensa amizade entre Ronsel e Jaime, quando retornam da guerra. Os dois vivenciaram coisas na qual não gostariam de voltar a ver nunca mais, é nesse momento que o título em inglês faz mais seu sentido. Mudbound significa laços da lama, os dois estiveram no mesmo abismo da guerra, ao mesmo tempo que compartilham do sofrimento na mesma terra. Porém, é uma amizade incômoda para Pappy e os olhares dos brancos. Para Ronsel, na Europa, por mais que estivesse em guerra, lá ele era visto como um herói de guerra, de volta para o Mississipi era um homem rejeitado.

Dee Rees utiliza de planos que priorizam close-ups, para que a emoção das personagens seja bem exposta, porém quando ela abre o enquadramento e faz os sujeitos se confrontarem com a terra, com a lama que os conecta é que se ganha força todo o seu processo de subversão do melodrama clássico. Rachel Morrison, ao realizar a fotografia, conseguia criar uma estética que não só traz as cores de uma época, mas também salientam a sujeira e o suor dos personagens. Aliás, a montagem contém uma fluidez entre narrativas, entre pontos de vista, entre personagens que é precisa, combinando com os voice-overs de forma que os intensificam.
            
Mudbound emociona e se torna um melodrama dos tempos contemporâneos não só pela necessidade de um novo olhar sobre o melodrama, mas simplesmente pela força trágica e estética que a direção de Dee Rees se faz. Com um elenco impressionante, ressaltando as atuações de Carey Mulligan, Mary J. Blige e Jason Mitchell. Esse filme expressa que todos os americanos estão unidos, queiram ou não queiram, pela lama que cobre seus pés. 

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