segunda-feira, 13 de novembro de 2017

1954 – O Medo (Roberto Rossellini, Itália & Alemanha) **** (4.0)

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Um de seus últimos filmes com sua esposa Ingrid Bergman, propõe alcançar outros terrenos com sua estética neorrealista, perpassando o suspense. Não só isso, usa dos signos do suspense para trazer um pesadelo que sua própria mulher vivia na vida real, culminando na própria separação do casal. A grande discussão neste filme só se conclui no poderosíssimo Uma Viagem à Itália. Com isto, conta a história de Irene que se arrepende de trair o seu marido, porém a ex-mulher do seu amante começa a chantageá-la, o que transforma sua vida numa terrível imersão na culpa.
            
O principal interesse do longa, visualmente, é como o diretor conseguiu mesclar o estilo Noir americano com sua estética neorrealista. Primeiro, o fantasma do pós-guerra assombra todos os personagens, todo o peso que estes dois estilos carregam consigo. Seu marido ser um cientista e conter certa correlação com a produção do gás que matou milhares no holocausto, faz parte de uma ancoragem na realidade. Segundo, a habilidade humanística com qual explora a atuação de Ingrid Bergman que sempre é um espetáculo, principalmente em seu trabalhado com o diretor italiano. A chantagem é feita aos poucos, com belas dosagens, construindo a tensão e o desespero da personagem. A cena final é com certeza o maior exemplo deste feito, em que num corredor completamente sombreado, que as luzes vão se acendendo uma a uma, para que Irene percorrer um trajeto de remorso e dor, que transformam o noir em expressionismo, trazendo sua essência de volta.
            
Em meio a toda essa experimentação estética, que apesar de visualmente sutil, conceitualmente é de extremo interesse. Existe, ainda, uma discussão ética sobre o cuidado com qual um diretor deve abordar algum de seus temas. É inevitável a relação de sua história com o momento da vida de Ingrid Bergman, que havia deixado seu marido e filhos nos Estados Unidos e partido com sua nova paixão, o diretor Roberto Rossellini. No país americano, ela havia sido estigmatizada por tal escolha, relacionando todo esse processo como uma traição. Sabendo que este filme foi realizado já quando o relacionamento dos dois estava para terminar, Rossellini parece empurrar um remorso, uma culpa à personagem que Bergman realiza, de forma que parece indulgente. Talvez pior, talvez pareça algo que ele precisasse que ela sentisse.
            Deve-se ressaltar, em contrapartida, que o que trago não é uma afronta aos diretores que produzem obras pessoais e que expressam a própria experiência dos mesmos. Muito pelo contrário, acho que seja inevitável falar de qualquer outra coisa que não sua própria experiência. Só denoto um cuidado com qual se põe certas questões sobre os atores, sobre sua relação com o tema. Hong Sang-Soo recentemente em On The Beach Alone at Night fez praticamente a mesma coisa que o diretor, porém em circunstancias mais cuidadosas, mais elaboradas. Além de que devo ainda salientar que não se deve, em hipótese alguma, produzir um comentário sobre o estado psíquico de um artista a partir de sua obra, pois qualquer obra faz atravessar pulsões de vida que fazem parte de um agenciamento, o que denota uma conjunção de sujeitos e não de uma única pessoa, ou seja, do que adianta dizer que Kafka tinha problemas com o pai? As pessoas querem mesmo resumir uma obra ao um comentário sobre o estado psicólogo do artista?  Como nos atuais casos em que procuram explorar nas obras de Harvey Weinstein, após as recentes acusações, tons de machismo e estupro.  Ou, ainda, em casos mais controversos analisar os filmes de Hitchcock numa perspectiva de alguém que perseguia suas atrizes ou os filmes de Woody Allen a partir da pedofilia e abuso sexual. (ressalto apenas que não pretendo com isso defende-los também, apenas usei como exemplo de que é algo desnecessário)

De qualquer modo, O Medo consegue ser um filme interessante, um suspense bem realizado, um drama do pós-guerra, o retrato de um relacionamento que se destrói por chantagens, realizações indiretas, culpa e desespero. O medo que a personagem vive não é apenas para com o conhecimento de seu marido sobre o seu caso extraconjugal, mas, de fato, o medo para com o que a culpa irá levar a fazer, a extrema culpa, quase uma culpa católica. É de extremo interesse que se faz esta conjunção de gêneros do pós-guerra, o noir e o neorrealismo, extraindo o que há de interessante nestas formas para produzir um intenso e triste longa.
            
Conclui-se, portanto, que, para além dos bastidores e de suas implicações éticas, O Medo é um filme que segue a estética Neorrealista do diretor que se modifica pouco a pouco, se tornando cada vez mais moderna, aqui, então realizada uma bela mescla entre o Noir Americano e o próprio estilo mais dramático, humanista de Rossellini. 

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