quinta-feira, 2 de novembro de 2017

2005 – Marcas da Violência (David Cronenberg, Canadá) ****1/2 (4.5)

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Como já havia ressaltado em outras críticas do diretor, o século XXI foi marcado por uma mudança de abordagem do diretor, em que deixou de lado o tom visceral e por vezes de extremo horror do corpo de seus filmes anteriores, para construir uma visão menos aterrorizante, mais racional talvez, uma visão quase científica/social. Não é à toa que também realizou um longa sobre a relação de Freud e Jung, os dois estudiosos da relação da mente e do corpo, psicanálise e a lógica da psicossomática, por assim dizer. Sem mais delongas, o filme em questão conta a história de Tom Stall, que após matar dois homens em legítima defesa, se torna um herói local e tem sua vida completamente transformada.
            
É digno de nota como o título traduzido (pelo menos em sua tradução para o português do Brasil) perde uma conotação múltipla que o título original traz.   “A History of Violence”, este título pode trazer o sentido de um histórico de violência, que de certo modo parece um histórico policial, mas também, um histórico do humano como um todo. Além disso, ainda pode dizer que esta narrativa será sobre violência, não que o título brasileiro seja péssimo, mas não abarca tantas potencialidades que se compõem com a própria narrativa. Uma pena que os títulos dos filmes, que são obras de arte, não são levados em conta como peças importantes de interpretação, como, por exemplo, numa pintura, escultura, ou qualquer outra. Voltando ao filme. Cronenberg trabalha com dois campos principais, o bar, onde Tom e sua esposa, Edie, trabalham, e sua casa, em que a maioria das cenas familiares acontecem, com a presença de sua filha mais nova e seu filho mais velho. A transformação, ou alteração em sua vida ocorre, pois todos ficam impressionados com seu ato de bravura, que surge muito mais como um reflexo, uma memória do corpo que se ativa em um momento de perigo. Sendo exposto na TV, um sujeito chamado Carl, interpretado por Ed Harris, com sua face dura de sempre, vai atrás dele, trazendo revelações de seu passado, dizendo que ele não é quem todos pensam e pior, ele tem uma dívida a pagar.
            
A escolha de Viggo Mortensen para este papel foi certeira, conseguindo transitar entre feições severas e ingênuas, percebe-se claramente uma sugestão de dupla personalidade que nada mais é uma questão de persona e sombra. Não necessariamente em suas conotações profundamente psicológicas, mas suas concepções até mais simples, ele criou uma máscara para se defender de uma sombra, que para onde ele anda o persegue. A grande proposta do diretor é analisar a potência de transformação de um corpo, é notório como o reflexo de Tom, que o faz matar os homens, tem uma perspectiva biológica e psicológica inserida, por assim dizer, psicossomática. De certa forma, essa reativação biológica da violência ocorre em todos os personagens por conta da situação estressante, o filho de Tom acaba agindo de forma completamente imprudente na escola e, principalmente, quando sua mulher se revolta com ele, o agredindo. Um momento que termina numa das cenas de sexo mais memoráveis da carreira do diretor (e olha que foram muitas), onde os dois fazem sexo na escada, em meio aos ataques de um e de outro, como se houvesse algo de incontrolável do corpo, ainda mais nessa situação de violência e desconhecimento. A atuação de Maria Bello como Edie é ótima, carregando muita força e presença. Outra atuação que é marcante, apesar de extremamente curta, é a de William Hurt, como um outro homem envolvido com Carl. Sua presença minúscula, porém, com um sorriso irritante no rosto e olhar cínico, marcaram ainda mais a força da possibilidade no que havia de memória no corpo de Tom.
      
Se existe algo que continua intacto nas produções de Cronenberg é a sua estética, visualmente houve uma mudança, pois, como já disse houve uma mudança de abordagem, mas seus signos são os mesmos, o corpo, a mente, o desejo, o limite e possíveis funcionamentos dos corpos. A estética de um diretor não é apenas suas cores, sua costumeira fotografia, seu estilo de montagem e sim para que essas funcionam em seu filme, o diretor pode fazer vinte filmes diferentes, com visuais muito diferentes, mas se ele tiver uma estética existirão repetições de funções, signos, sensações. Com isso, Marcas da Violência difere da abordagem dos seus filmes anteriores, mas é um Cronenberg extremamente inteligente e bem conduzido. 

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