
Como já havia ressaltado em
outras críticas do diretor, o século XXI foi marcado por uma mudança de
abordagem do diretor, em que deixou de lado o tom visceral e por vezes de
extremo horror do corpo de seus filmes anteriores, para construir uma visão
menos aterrorizante, mais racional talvez, uma visão quase científica/social.
Não é à toa que também realizou um longa sobre a relação de Freud e Jung, os
dois estudiosos da relação da mente e do corpo, psicanálise e a lógica da
psicossomática, por assim dizer. Sem mais delongas, o filme em questão conta a
história de Tom Stall, que após matar dois homens em legítima defesa, se torna
um herói local e tem sua vida completamente transformada.
É digno de nota como o título traduzido (pelo menos em
sua tradução para o português do Brasil) perde uma conotação múltipla que o
título original traz. “A History of
Violence”, este título pode trazer o sentido de um histórico de violência, que
de certo modo parece um histórico policial, mas também, um histórico do humano
como um todo. Além disso, ainda pode dizer que esta narrativa será sobre
violência, não que o título brasileiro seja péssimo, mas não abarca tantas
potencialidades que se compõem com a própria narrativa. Uma pena que os títulos
dos filmes, que são obras de arte, não são levados em conta como peças
importantes de interpretação, como, por exemplo, numa pintura, escultura, ou
qualquer outra. Voltando ao filme. Cronenberg trabalha com dois campos
principais, o bar, onde Tom e sua esposa, Edie, trabalham, e sua casa, em que a
maioria das cenas familiares acontecem, com a presença de sua filha mais nova e
seu filho mais velho. A transformação, ou alteração em sua vida ocorre, pois
todos ficam impressionados com seu ato de bravura, que surge muito mais como um
reflexo, uma memória do corpo que se ativa em um momento de perigo. Sendo
exposto na TV, um sujeito chamado Carl, interpretado por Ed Harris, com sua
face dura de sempre, vai atrás dele, trazendo revelações de seu passado,
dizendo que ele não é quem todos pensam e pior, ele tem uma dívida a pagar.
A escolha de Viggo Mortensen para este papel foi
certeira, conseguindo transitar entre feições severas e ingênuas, percebe-se
claramente uma sugestão de dupla personalidade que nada mais é uma questão de
persona e sombra. Não necessariamente em suas conotações profundamente
psicológicas, mas suas concepções até mais simples, ele criou uma máscara para
se defender de uma sombra, que para onde ele anda o persegue. A grande proposta
do diretor é analisar a potência de transformação de um corpo, é notório como o
reflexo de Tom, que o faz matar os homens, tem uma perspectiva biológica e
psicológica inserida, por assim dizer, psicossomática. De certa forma, essa
reativação biológica da violência ocorre em todos os personagens por conta da
situação estressante, o filho de Tom acaba agindo de forma completamente
imprudente na escola e, principalmente, quando sua mulher se revolta com ele, o
agredindo. Um momento que termina numa das cenas de sexo mais memoráveis da
carreira do diretor (e olha que foram muitas), onde os dois fazem sexo na
escada, em meio aos ataques de um e de outro, como se houvesse algo de incontrolável
do corpo, ainda mais nessa situação de violência e desconhecimento. A atuação
de Maria Bello como Edie é ótima, carregando muita força e presença. Outra
atuação que é marcante, apesar de extremamente curta, é a de William Hurt, como
um outro homem envolvido com Carl. Sua presença minúscula, porém, com um
sorriso irritante no rosto e olhar cínico, marcaram ainda mais a força da
possibilidade no que havia de memória no corpo de Tom.
Se existe algo que continua intacto nas produções de
Cronenberg é a sua estética, visualmente houve uma mudança, pois, como já disse
houve uma mudança de abordagem, mas seus signos são os mesmos, o corpo, a
mente, o desejo, o limite e possíveis funcionamentos dos corpos. A estética de
um diretor não é apenas suas cores, sua costumeira fotografia, seu estilo de
montagem e sim para que essas funcionam em seu filme, o diretor pode fazer
vinte filmes diferentes, com visuais muito diferentes, mas se ele tiver uma
estética existirão repetições de funções, signos, sensações. Com isso, Marcas
da Violência difere da abordagem dos seus filmes anteriores, mas é um
Cronenberg extremamente inteligente e bem conduzido.
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