
A adaptação do grande romance
de Flaubert pelo tão genial quanto Renoir acaba por ser mais que uma síntese da
obra, apesar de fragmenta-la, longe de ser ruim, é um filme espetacular. Renoir,
já inserido no cinema falado, com total eloquência das loucuras e do romantismo
idealista da burguesia, narra este famoso enredo sobre Emma, uma camponesa, que
se casa com Pierre, recém viúvo. Esperando um relacionamento como os romances
de época, se decepciona e começa se relacionar com diversos homens para
alcançar seu ideal de romance.
A observação sócio realista do diretor se compõe a visão
‘flaubertiana’, Renoir é um artista realista acima de tudo. Por isso se compõe
tão bem com Zola e Gorki em filmes posteriores. Ao retratar a história de
Madame Bovary faz um recorte para quando Pierre já é um médico consolidado e
está casado. Para os que não conhecem o livro, a morte da primeira esposa do médico
surge como um susto, quebrando e tanto com a expectativa. A explicação para tal
fato é o total deslocamento de intenção, porém não de abordagem. A intenção de
Renoir, que utiliza bastante de um teor cômico aquém do livro, é a de produzir
um enredo puramente sobre a burguesia que está nos sujeitos, o romantismo, o
idealismo não são questões teóricas ou entes transcendentes de organizações e
coletivos, eles se concentram nos indivíduos. Ser burguês (ou seja, fazer parte
desta classe social) não te fez um romântico idealista e ser proletário não te
faz materialista.
A
introdução de Emma como uma personagem trágica e cômica, ajuda a deixar esta
proposta mais notória. Dessa forma, quando ela se torna Madame Bovary, se
decepciona com o que encontrou no mundo burguês, nada do que havia nos livros e
não que Pierre não seja um romântico, pois o é, porém também é um homem tímido
e completamente apaixonado por seu trabalho. Na cena do baile, Renoir produz um
retrato interessante do protagonista masculino, em que Emma dança com outro
homem e seu marido parece se esconder de toda aquela gente. Em um plano
sequência belo e intenso, principalmente para a época, eloquentemente movimenta
a câmera pelas formalidades burguesas e é Pierre quem está deslocado em sua
classe social, sua esposa que o rejeita.
Outro grandioso momento é a opera. Existe uma autoconsciência
narrativa neste momento, Pierre e Emma dialogam sobre a peça, sobre as
traições, sobre amantes, como se falassem deles mesmos. “A música atrapalha a
palavra”, é muito sabido que a música tem uma potência sentimental e até mesmo
sensorial maior que a palavra, dessa forma, tendo até mesmo uma expressividade
romântica (o que não quer dizer que a palavra não produza tal expressividade),
sua forma se prende menos à significados. Tendo isso em vista, Pierre parece
fazer um grande comentário sobre toda a situação que estava vivendo, em que
romantismo e o ideal de vida burguesa que Emma esperava destoava. Neste momento
mesmo, ela elabora mais uma fuga para seu ideal em um amante, é como se ela
realmente vivesse os romances proibidos que adorava.
Renoir
se assemelha com Flaubert em não julgar seus personagens, os desenvolve como
são, existe uma sinceridade no que retrata. Neste filme ainda é possível
perceber o quanto o diretor já estava fazendo um cinema completamente moderno,
com um uso extremamente poderoso da profundidade de campo, sempre utilizando de
janelas ao fundo, com movimento e até certo aspecto voyeur. Algo que se tornou
marca registrada sua e até mesmo de grandes diretores como Orson Welles,
diretores estes que não se contentavam com o que já era fácil de se obter no
teatro, potencializando a percepção do cinema, utilizando o fundo do quadro.
Isto só foi possível, pois os dois diretores conheciam o que já era proposto
pelo teatro e como com o cinema subvertê-lo.
Portanto, Madame Bovary pode parecer uma síntese ou um
recorte da obra de Flaubert, por não a cobrir por completo ou por fazer algumas
alterações no enredo em serviço de produzir uma adaptação que lhe seja própria.
Se assemelhando com o autor do livro por sua abordagem realista e social, ao
mesmo tempo acrescentando um tom cômico e por fim cinematográfico, do melhor
jeito de Renoir.
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