quinta-feira, 10 de agosto de 2017

1934 – Madame Bovary (Jean Renoir, França) **** (4)

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A adaptação do grande romance de Flaubert pelo tão genial quanto Renoir acaba por ser mais que uma síntese da obra, apesar de fragmenta-la, longe de ser ruim, é um filme espetacular. Renoir, já inserido no cinema falado, com total eloquência das loucuras e do romantismo idealista da burguesia, narra este famoso enredo sobre Emma, uma camponesa, que se casa com Pierre, recém viúvo. Esperando um relacionamento como os romances de época, se decepciona e começa se relacionar com diversos homens para alcançar seu ideal de romance.
            
A observação sócio realista do diretor se compõe a visão ‘flaubertiana’, Renoir é um artista realista acima de tudo. Por isso se compõe tão bem com Zola e Gorki em filmes posteriores. Ao retratar a história de Madame Bovary faz um recorte para quando Pierre já é um médico consolidado e está casado. Para os que não conhecem o livro, a morte da primeira esposa do médico surge como um susto, quebrando e tanto com a expectativa. A explicação para tal fato é o total deslocamento de intenção, porém não de abordagem. A intenção de Renoir, que utiliza bastante de um teor cômico aquém do livro, é a de produzir um enredo puramente sobre a burguesia que está nos sujeitos, o romantismo, o idealismo não são questões teóricas ou entes transcendentes de organizações e coletivos, eles se concentram nos indivíduos. Ser burguês (ou seja, fazer parte desta classe social) não te fez um romântico idealista e ser proletário não te faz materialista.

A introdução de Emma como uma personagem trágica e cômica, ajuda a deixar esta proposta mais notória. Dessa forma, quando ela se torna Madame Bovary, se decepciona com o que encontrou no mundo burguês, nada do que havia nos livros e não que Pierre não seja um romântico, pois o é, porém também é um homem tímido e completamente apaixonado por seu trabalho. Na cena do baile, Renoir produz um retrato interessante do protagonista masculino, em que Emma dança com outro homem e seu marido parece se esconder de toda aquela gente. Em um plano sequência belo e intenso, principalmente para a época, eloquentemente movimenta a câmera pelas formalidades burguesas e é Pierre quem está deslocado em sua classe social, sua esposa que o rejeita.
            
Outro grandioso momento é a opera. Existe uma autoconsciência narrativa neste momento, Pierre e Emma dialogam sobre a peça, sobre as traições, sobre amantes, como se falassem deles mesmos. “A música atrapalha a palavra”, é muito sabido que a música tem uma potência sentimental e até mesmo sensorial maior que a palavra, dessa forma, tendo até mesmo uma expressividade romântica (o que não quer dizer que a palavra não produza tal expressividade), sua forma se prende menos à significados. Tendo isso em vista, Pierre parece fazer um grande comentário sobre toda a situação que estava vivendo, em que romantismo e o ideal de vida burguesa que Emma esperava destoava. Neste momento mesmo, ela elabora mais uma fuga para seu ideal em um amante, é como se ela realmente vivesse os romances proibidos que adorava.

Renoir se assemelha com Flaubert em não julgar seus personagens, os desenvolve como são, existe uma sinceridade no que retrata. Neste filme ainda é possível perceber o quanto o diretor já estava fazendo um cinema completamente moderno, com um uso extremamente poderoso da profundidade de campo, sempre utilizando de janelas ao fundo, com movimento e até certo aspecto voyeur. Algo que se tornou marca registrada sua e até mesmo de grandes diretores como Orson Welles, diretores estes que não se contentavam com o que já era fácil de se obter no teatro, potencializando a percepção do cinema, utilizando o fundo do quadro. Isto só foi possível, pois os dois diretores conheciam o que já era proposto pelo teatro e como com o cinema subvertê-lo.
           
Portanto, Madame Bovary pode parecer uma síntese ou um recorte da obra de Flaubert, por não a cobrir por completo ou por fazer algumas alterações no enredo em serviço de produzir uma adaptação que lhe seja própria. Se assemelhando com o autor do livro por sua abordagem realista e social, ao mesmo tempo acrescentando um tom cômico e por fim cinematográfico, do melhor jeito de Renoir. 

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