
A
primeira parte de uma trilogia, ou melhor, a primeira parte de um filme único,
fragmentado. Miguel Gomes realizou um feito extremamente ambicioso, produzir um
filme que contenha a mesma fantasia de As Mil e Uma Noites, assim como seguir
sua estrutura de contos, e, ainda, permanecer presa nas repercussões sociais de
seu país, principalmente sobre a crise de 2014. Porém, mais que isso, o que
conquistou aqui foi um verdadeiro experimento anacrônico, um olhar dos mais
sinceros, cômicos, políticos e absurdos sobre toda uma população.
O início do filme é a perfeita
introdução de sua temática. Seguindo a estética do documentário, o espectador
assiste a mais ou menos três narrativas que se cruzam. A primeira de
trabalhadores sendo demitidos por conta da crise econômica. A segunda sobre as
técnicas usadas para matar vespas que estavam destruindo as colmeias, porém,
muitas vezes ao tentar matar as criaturas as abelhas morriam também e perdia-se
tudo. Já sabendo da metáfora intensa que essas duas simples histórias de ficção
conseguem produzir pela simples montagem (ou seja, a justaposição das mesmas),
Miguel se insere, literalmente, na terceira narrativa, cheio de dúvidas de como
produzir um filme com o sabor adocicado da fantasia árabe e ainda conseguir ser
completamente político, consciente de seu tempo. Um questionamento já visto no
cinema brasileiro, Glauber Rocha, usando de seus personagens berra “a política
e a poesia são muito para um homem só” em Terra em Transe. Os contos só se iniciam
na narrativa do português quando se coloca na mesma posição que Xerazade, o de
alguém a contar histórias para sobreviver, claro, existe um prazer já existente
em contar histórias, mas nessas, na qual ele produz, é como se fosse obrigado
por uma angústia interminável de elaborar a situação de todo um povo.
Com uma subversiva introdução os
contos começam. O primeiro conto, “O Homem de Pau Feito”, tem um tom cômico que
parece se conectar de alguma forma com o grupo de comédia britânico Monty
Python, pelo tom surreal e de piadas críticas completamente exageradas. A
situação é bem simples, políticos portugueses dialogam com empresários
americanos, porém quando decidem caminhar em seus cavalos e camelos se
encontram com um mago que faz todos ficarem com a maior ereção que eles já
viram na vida. Existe um potencial olhar psicanalítico nos homens de poder, que
parecem não conseguir chegar a lugar algum, porém, ao adquirirem o falo se
contentam. A grande façanha desta pequena história hilária é a habilidade com
que produz diálogos cômicos sobre a situação econômica do país sendo ao mesmo
tempo divertida e crítica.
O segundo conto, “A História do Galo e do Fogo”, tem um
interessante entrelaçamento de duas narrativas, numa cidade, em épocas de
eleição, todos os cidadãos se encontram com grande descrença sobre as votações
e nos candidatos, além disso, um galo canta todas as noites de forma que grande
parte da pequena população de Resende está ficando incomodada. Enquanto isto,
três crianças se apaixonam e trocam mensagens por celular, poucas vezes se
encontrando. Este segundo momento parece se alongar um pouco mais do que
deveria, porém existe um momento poderoso no qual o Galo, como num mito, está
gritando para alertar os humanos, é como um pedido de atenção ao que está ao
seu redor e até mesmo para a história de seu país.
Seguindo essa estruturação de
narrativas fictícias que carregam um subtexto fictício, numa roupagem moderna e
mítica, o terceiro conto, “O Banho dos Magníficos” que acaba por ser o mais
potente de todos os três contos, porém também o mais melancólico. Um homem que
normalmente organiza o comum banho da virada, que serve para banhar-se do novo
ano que chegou, parece estar com problemas cardíacos e com total desesperança
que qualquer pessoa apareça para esta celebração, exatamente por conta da
tristeza que ronda o povo português. Em diversos momentos, Gomes mistura a
ficção com o documentário, já que o protagonista da história faz perguntas aos
seus amigos, que parece realmente relatar acontecimentos de suas vidas, é
possível sentir o peso de cada palavra deles. Por mais que contenha uma ligação
completa com a realidade, consegue ser o segmento com mais signos surreais, de
início o protagonista se encontra dentro da barriga de uma baleia, como num
sonho e um pouco mais tarde uma baleia se encontra encalhada na praia, o que
ocorre em seguida é triste. Não só sendo uma metáfora para a situação do
personagem, mas também indicando sua posição heroica. Joseph Campbell quando
produziu a jornada do herói, baseando-se na psicologia analítica de Carl Jung,
colocou como uma de suas fases “O Ventre da Baleia”, em que o herói se depara
com o desconhecido, como se olhasse para um abismo. O personagem do filme se
depara com o peso de sua própria morte, com o peso da morte ou das perdas de
diversos personagens, sua função, seu objetivo é levar esperança para o povo
português de um ano melhor, mas sua aventura é sofrer por não saber nem mesmo
se ele acredita em tal fato.
O fim do filme, sua última
sequência, quando o povo português se banha, faz festa com a esperança de um
novo ano, como todos anos. Percebe-se um retrato melancólico, porém com faíscas
de alegria. Miguel Gomes olha para os portugueses de forma singela. Finalizando
a primeira parte de forma impressionante, claro que em um filme antológico
sempre haverá altos e baixos, momentos mais interessantes que outros, ou mais
envolventes, porém dificilmente se encontra um filme que potencializa a ficção
e documentário em sua mistura, te fazendo questionar sobre a grande frase já
citada de Glauber Rocha, pois, ele mesmo, o autor da frase era um diretor
político que pulsava misticismo e subversão. Assim sendo, As Mil e Uma Noites
volume 1 – O Inquieto é cômico, absurdo, triste e intenso, uma verdadeira carta
de amor ao povo português, ao mesmo tempo que olhar severo aos tempos de crise.
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