
Uma estreia que parece ter sido produzida por um diretor com total
domínio dos seus signos visuais, em sua ressonância com o cinema mundial e
principalmente de suas próprias terras. Uma lenta imersão na vida imaginária ou
vívida de Chen Sheng, após sair da prisão tenta buscar sentido e caminho para
sua vida, trabalhando como ajudante de uma médica, fazendo poesias oníricas e
passando por um processo de elaboração da própria existência.
O jovem diretor Bi Gan tem em suas referências mais notórias a maneira de conduzir sua câmera pelos espaços como a de Tarkovsky, uma condução poética, sólida e que carrega a imagem como se a câmera estivesse se introduzindo em um sonho. Também expressa influência de Hou Hsiao-Hsien, na maneira que em longos planos sequencias auxiliados por elipses e uma montagem espetacular constroem e fortificam seus personagens em relação ao tempo. Vale ressaltar a influência de Adeus ao Sul do diretor taiwanês no jovem diretor chinês na cena em que seu personagem dirige de moto em direção à câmera. A fotografia em tom geral permeia um aspecto melancólico, utilizando de cores frias, em que o ambiente sempre parece nublado. Nesta ambientação tristonha, o protagonista retoma sua vida aliado de uma já idosa médica que compartilha de certo desprezo com o que está por vir do mundo. Chen Sheng ainda se responsabiliza por seu sobrinho que vive em péssimas condições com o pai, este, que é irmão de Sheng, parece louco e pouco ajuda seu filho. Sua desordem é tamanha que perde seu filho de vista e o protagonista deve buscar este garoto em sua cidade natal, uma possibilidade do futuro em seu passado, emaranhado de incertezas. Por isso, o diretor usa e abusa da potência da montagem e da narrativa para construir momentos de indiscernibilidade da mente de seu personagem. Por exemplo, quando pega no sono no sofá e a câmera foca na sua orelha em plano detalhe para quando se afastar mostra-lo num barco, deixando seus sapatos caírem no rio da memória.
Existe
um outro momento interessante no longa em que um plano sequência perdura por
mais ou menos quarenta minutos, fazendo um passeio cartográfico em que o
protagonista busca incessantemente o lugar que deve ir, em certos momentos,
Chen Sheng se perde da percepção da câmera, que acompanha outros personagens em
suas melancólicas individuais, como peças de um mapa em construção da própria
memória do personagem. É um plano sequencia muito complexo, pois é um grande
percurso de automóvel em automóvel, de barco em barco, de pessoa para pessoa.
Na cidade em que busca seu sobrinho existe uma coexistência de tempos, o seu
passado, presente e futuro se tornam um só, algo muito comum também nos filmes
de Hong Sang-Soo, mas conduzido cada um à sua maneira, como cada imagem-tempo
tem a sua peculiaridade, porém a mesma potência de fazer habitar todos os
tempos como num ser humano. Se não bastasse tamanha poesia tanto nas escritas
pelo personagem, quanto nas imagens produzidas pelo diretor, ainda existe uma
total consciência do trabalho com o tempo, pois o diretor faz uso de forma
simbólica do relógio diversas vezes, sendo um símbolo para a máfia e um objeto
que constantemente aparece à espreita em cena, como se fosse engolir seus
personagens.
Dessa
forma, Bi Gan construiu uma imersiva narrativa sobre memória e a temporalidade
de um sujeito, conduzindo as imagens como num sonho, fazendo as dores do
passado se colidirem com os desejos do futuro. Fluído como um rio, um dos
filmes mais belos produzidos recentemente, que parece necessitar uma exploração
cada vez mais detalhada, criando um universo onírico próprio e inesquecível.
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