quarta-feira, 2 de agosto de 2017

2015 – Kaili Blues (Bi Gan, China) ****1/2 (4.5)

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Uma estreia que parece ter sido produzida por um diretor com total domínio dos seus signos visuais, em sua ressonância com o cinema mundial e principalmente de suas próprias terras. Uma lenta imersão na vida imaginária ou vívida de Chen Sheng, após sair da prisão tenta buscar sentido e caminho para sua vida, trabalhando como ajudante de uma médica, fazendo poesias oníricas e passando por um processo de elaboração da própria existência.            

O jovem diretor Bi Gan tem em suas referências mais notórias a maneira de conduzir sua câmera pelos espaços como a de Tarkovsky, uma condução poética, sólida e que carrega a imagem como se a câmera estivesse se introduzindo em um sonho. Também expressa influência de Hou Hsiao-Hsien, na maneira que em longos planos sequencias auxiliados por elipses e uma montagem espetacular constroem e fortificam seus personagens em relação ao tempo. Vale ressaltar a influência de Adeus ao Sul do diretor taiwanês no jovem diretor chinês na cena em que seu personagem dirige de moto em direção à câmera. A fotografia em tom geral permeia um aspecto melancólico, utilizando de cores frias, em que o ambiente sempre parece nublado. Nesta ambientação tristonha, o protagonista retoma sua vida aliado de uma já idosa médica que compartilha de certo desprezo com o que está por vir do mundo. Chen Sheng ainda se responsabiliza por seu sobrinho que vive em péssimas condições com o pai, este, que é irmão de Sheng, parece louco e pouco ajuda seu filho. Sua desordem é tamanha que perde seu filho de vista e o protagonista deve buscar este garoto em sua cidade natal, uma possibilidade do futuro em seu passado, emaranhado de incertezas. Por isso, o diretor usa e abusa da potência da montagem e da narrativa para construir momentos de indiscernibilidade da mente de seu personagem. Por exemplo, quando pega no sono no sofá e a câmera foca na sua orelha em plano detalhe para quando se afastar mostra-lo num barco, deixando seus sapatos caírem no rio da memória.

Existe um outro momento interessante no longa em que um plano sequência perdura por mais ou menos quarenta minutos, fazendo um passeio cartográfico em que o protagonista busca incessantemente o lugar que deve ir, em certos momentos, Chen Sheng se perde da percepção da câmera, que acompanha outros personagens em suas melancólicas individuais, como peças de um mapa em construção da própria memória do personagem. É um plano sequencia muito complexo, pois é um grande percurso de automóvel em automóvel, de barco em barco, de pessoa para pessoa. Na cidade em que busca seu sobrinho existe uma coexistência de tempos, o seu passado, presente e futuro se tornam um só, algo muito comum também nos filmes de Hong Sang-Soo, mas conduzido cada um à sua maneira, como cada imagem-tempo tem a sua peculiaridade, porém a mesma potência de fazer habitar todos os tempos como num ser humano. Se não bastasse tamanha poesia tanto nas escritas pelo personagem, quanto nas imagens produzidas pelo diretor, ainda existe uma total consciência do trabalho com o tempo, pois o diretor faz uso de forma simbólica do relógio diversas vezes, sendo um símbolo para a máfia e um objeto que constantemente aparece à espreita em cena, como se fosse engolir seus personagens.

Dessa forma, Bi Gan construiu uma imersiva narrativa sobre memória e a temporalidade de um sujeito, conduzindo as imagens como num sonho, fazendo as dores do passado se colidirem com os desejos do futuro. Fluído como um rio, um dos filmes mais belos produzidos recentemente, que parece necessitar uma exploração cada vez mais detalhada, criando um universo onírico próprio e inesquecível. 

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