Hong
Sang-Soo é um diretor coreano, com já realizados 20 filmes, até o ano de 2017. Narrando
sempre as mesmas histórias sobre artistas frustrados e melancólicos, perdidos
no tempo, alguns fugindo do futuro, outros correndo do passado. A repetição é
sua máxima, algumas ocasiões também tendem a se repetir e se tornaram sua
marca, como os encontros para beber de seus personagens, que muitas vezes
revelam mais do que deveriam, liberam seu inconsciente e se expressam de
verdade, ou ainda, as traições, os casos, os amores impossíveis passageiros e
para a vida toda. Pode-se dizer que sempre é a mesma história, fragmentos de
sua conturbada vida que se conectam e reconectam, e continuam a produzir ótimos
filmes, por mais simples que seja, constrói enredos enigmáticos, por seus
diálogos que exploram a própria condição existencial humana, sem nunca tentar
ser poético, sempre de forma simples, sem eloquência, muitas vezes tudo é dito
num tom atonal de um bêbado fanfarrão.
Portanto, neste texto, tenho intuito de ressaltar alguns
recursos imagéticos que justificavam sua estética, entre elas a Iluminação
límpida, a utilização do espaço e de objeto para falar das sensações e
histórias dos personagens e, por fim, o uso da repetição no decorrer de seus
filmes.
A Iluminação e a
Pintura
Mas de
onde vem está paixão por expressar cenas cotidianas ao máximo? Pois bem,
obviamente existem referências claras advindas da Nouvelle Vague, como Alain
Resnais, ou Eric Rohmer, enquanto um explora o tempo e o sonho de forma que se
tornam sempre indiscerníveis, o outro repete suas crônicas sobre
relacionamentos amorosos. E ainda em Luís Buñuel, já que essa mistura entre o
sonho e a vida, desejos, medos já é uma característica do surrealismo,
acentuando o que é realidade, mas que comumente não é visível objetivamente,
eles se distinguem pelo fato de Hong usar de um minimalismo poderoso, aquém do
lado mais pictórico e simbolista. Entretanto, além desta óbvia influência do
cinema, existe uma certa tradição que parece se expressar em sua estética,
identificada em três pintores com ideias diferentes. Cézanne, o pintor favorito
do diretor, Courbet, no qual já teve uma pintura discutida em seus filmes e
Vermeer, pintor de obras cotidianas. Mas o que tais pintores têm em comum? Um
pós-impressionista, um realista (radical, diga-se de passagem) e um pintor
barroco. O uso da luz nos três é essencial, assim como a própria natureza das
pinturas que retratam acontecimentos simples repetidas vezes.

O Encontro, Gustave Courbet, 1854
Courbet
foi um pintor que estava propondo um novo olhar sobre as pinturas, sendo um dos
precursores do movimento do realismo na pintura. Procurava tudo que era
concreto e que fosse visível, ele gostaria de expressar em suas pinturas os
costumes e modos de vida em sua época a partir de sua perspectiva. Sempre usando de uma iluminação, por vezes
límpidas por outras vezes triste, mas sempre iluminando o caminho de seus
personagens, seguindo a tradição de Vermeer ao pintar ações quaisquer. Pois pintava acontecimentos simples, corpos nus, retratos, sempre
procurando uma extração de um aspecto da realidade, mas ressaltando que é um
homem e como qualquer outro, sabe que existe uma influência de quem vê. Ao
mesmo tempo que gostaria de servir como objeto de estudo da história de seu
tempo, gostaria de ser entendido por quem é.
Já
Paul Cézanne, que foi influenciado fortemente por Courbet, a princípio, seguiu
pelo caminho do impressionismo, no qual explorava a percepção humana, porém,
evolui tal potência à própria ação de transbordar da mesma, pois a percepção
nunca é pura, sempre está carregada de sentimentos, desejos, sonhos, todos
essas coisas entrelaçadas, de forma que ao olho nu se tornam indiscerníveis.
Nunca procurando apreender o que vê de forma perfeita (aqui é onde se difere
dos dois anteriores, pois renuncia fortemente o aspecto austero e supostamente
realista das pinturas) e sim da forma que ele as vê. Se tornando em consequência
disto um precursor do cubismo, no qual diversas percepções se entrelaçam,
tentando conduzi-las de forma que se tornassem vívidas até mesmo táteis.
Os Jogadores de Cartas, Paul Cezánne, 1890
Tendo em vista a proposta dos pintores e a semelhante postura de
enquadrar com limpidez, Hong Sang-Soo usa da luz para contar suas histórias de
forma que as sombras nunca se produzam como ponto principal, sempre se
ressaltando nas bordas, apenas para dar forma ao exposto, uma mistura em que
tudo se torna visível aos olhos do espectador. As diversas percepções se
misturam durante seus filmes, como em A Virgem Desnuda Pelos Seus Celibatários
ou em Certo Agora, Errado Antes, no qual a história é contada duas vezes e
diferentes construções são feitas a partir de singelas nuances. Ou ainda, sua
habilidade de misturar o próprio sonho de seus personagens com a narrativa
vigente seja em A Mulher É o Futuro do Homem, ou A Montanha da Liberdade. De
forma ainda mais eloquente, consegue misturar sua própria vida, seus desejos e
sua própria percepção sobre questões mundanas, como a decadente masculinidade
contemporânea, expresso de maneira mais poderosa em O Filme de Oki e, também, em
Noite e Dia.
Noite e Dia, Hong Sang-Soo, 2008
Mas a potência máxima de sua forma
fragmentada de construir um filme é percebida pela sua noção de que a narrativa
como a própria vida é movida de forma confusa, na qual, por meio de nossas próprias escolhas, de nossos desejos mais
inconscientes, fazemos coexistir diversas formas de ser, querer e agir, tudo
isto em composição ainda com a própria incerteza da vida, das coincidências e
comicidades da tragédia humana. Ser humano este que busca incessantemente por
sentido, busca culpados e se torna um estranho ou falso quando aceita esta
incerteza.
Seus personagens são por vezes manipuladores e misóginos,
outras vezes inocentes perdedores e mais alguns são artistas perdidos, mas de
fato, todos são frustrados por questões simples que se expressam quando bebem.
Eles se repetem, se multiplicam, pois Hong Sang-Soo é prolífico e seus
personagens são os mesmos, suas situações são as mesmas, mas como consegue produzir
algo de novo na repetição? Ele muda a narrativa em todos os seus enredos,
sempre se tem uma forma geométrica de infinitos lados que a mesma situação é
explorada por tantas perspectivas, que se misturam e se tornam poderosas armas
da produção narrativa. O Dia Em Que Ele Chegar é a maior expressão dessa
maneira de explorar a vida na mistura que é possível de se fazer na ficção de
percepções, desejos, sonhos.
O Dia em que Ele Chegar, Hong Sang-Soo, 2011
Como Você Sabe de Tudo, Hong Sang-Soo, 2009

Certo Agora, Errado Antes, Hong Sang-Soo, 2015
Jovem com Jarra de Água, Vermeer, 1662 O Geográfo, Vermeer, 1669
O
Tempo é o Minotauro
Porém, como manter o espectador ainda instigado com
tantos filmes que se revelam, revelam as peculiaridades de seus personagens de
forma tão límpida? Já foi dito que sua indiscernibilidade é como o interior de
uma pessoa, ou seja, ele torna diversos modos humanos visíveis, porém eles não
se diferenciam tanto, são como uma mistura, mas existe também outro fator
estrutural que envolve a maneira que a memória percorre seus personagens. Em
muitos de seus filmes, a cronologia se torna uma bagunça, não apenas para
tornar a história mais cômica (como em A Montanha da Liberdade), mas para
tornar seus personagens presos em um fluxo de memória que não se faz pela linha
comum de Cronos, mas por pontuações de afetos, não é uma documentação do que ocorreu,
mas agenciamentos desconexos da memória de seus personagens.
Hong usa diversos recursos simples que demonstram a
estagnação no tempo de alguns de seus personagens, ou ainda a vontade de fugir
do passado com todas suas forças. Existem duas figuras imagéticas que expressam
essas potencialidades, a primeira é a fotografia, sempre presente nos primeiros
filmes do diretor e sendo ainda mais poderosa em alguns de seus filmes
recentes. Em O Dia em que o Porco Caiu no Poço, uma das personagens destrói a fotografia
de seu marido e filho, como se precisasse apagar estas memórias, ou a narrativa
de Ha Ha Ha que é completamente guiada por fotografias do presente, enquanto o
passado se move com imagens-movimentos. Ou seja, a fotografia é como um
instante único que se cristaliza e nunca retorna a se movimentar, nem para se
afastar, nem para voltar. Assim, o diretor coreano as usa de maneira múltipla,
rearranjando seus próprios signos em prol de cada um de seus filmes. No
primeiro filme citado, o desejo é que a fotografia se afaste, que o passado se
vá, em Ha Ha Ha, já não é o passado que não se move, este permanece com um
frescor, uma vivacidade, enquanto o presente, em fotografias descoloridas
parece estagnado, petrificado. Chega a ser irônico na proposta deste segundo
filme, já que os dois personagens estão se preparando para viajar, para uma
nova vida, mas pelas fotografias, existe uma sensação de que as coisas não vão
se tornar melhores que o passado.
Outro caso importante é em O Dia Em Que Ele Chegar,
quando o protagonista depois de uma incursão repetitiva se depara com uma
mulher que deseja tirar uma foto dele, seu rosto é de puro terror. É com essa
imagem que o filme se finaliza. Já é sabido que foi dessa forma que o diretor
conheceu sua ex-mulher (durante este filme eles ainda estavam casados), porém
existe uma demarcação poderosa de um homem olhando para as lentes da câmera,
como se soubesse que aquele momento, que grande parte das afecções que ainda
estavam no corpo iriam se esvair com o clique da câmera, iriam se tornar seu passado.
Assim como Roland Barthes disse em A Câmera Clara “A Morte é o eidos da Foto”, ou seja, deixa de ser
sujeito e torna-se spectrum, é como
passar por uma experiência de morte. Embalsamando o momento. Aquele que sempre
retorna, como se o medo de seus personagens pelo passado seja pelo medo de que
tudo se repita, e não é exatamente isso que costuma acontecer?
O segundo recurso sempre esteve presente, mas veio se tornando
mais relevante em seus filmes mais recentes. Os lugares históricos, os templos,
as fortalezas, a arquitetura da memória de todo um país. Não é à toa que seus
personagens viajam tanto, sempre em movimento, sempre fugindo do passado, porém
as demarcações do passado estão na própria matéria do local. Então, quando a
protagonista de Nossa Sunhi vai embora e deixa para trás todos os seus
possíveis pretendentes perdidos, vagando por um imenso templo, ou quando Haewon,
de Filha de Ninguém, precisa se desprender de seu professor e amante para
seguir sua própria vida, seus encontros oníricos ou reais, são em uma fortaleza
gigantesca. Em O Portão do Regresso seu personagem tem tanta relação com a
lenda do local, que não ousa nem mesmo visitar para não enfrentar seu próprio
passado. Em Ha Ha Ha, o protagonista sonha com um herói histórico, para
possivelmente entender-se.
O Dia Em Que Ele Chegar, Hong Sang-Soo, 2011

Nossa Sunhi, Hong Sang-Soo, 2013
Cartografando vidas com a
câmera, usando de um recurso espacial e visual que costuma evocar memória em
seus personagens, talvez não memória, seria melhor dizer algum tipo de afeto
que os move, os move à mudança, é como o mar. A Mulher na Praia, Como Você Sabe
de Tudo, A Visitante Francesa, O Poder da Provincia de Kangwon, em todos esses
longas o mar sempre surge de forma convulsa como a vida de seus personagens, é
de uma beleza sem igual. Por fim, vale ressaltar o uso da neve em seus filmes,
tanto quanto o mar, O Dia Em Que Ele Chegar, O Conto de Cinema, O Filme de Oki,
A Mulher É o Futuro do Homem, Certo Agora, Errado Antes, também evoca uma
necessidade maior dos personagens de se comunicarem, de se juntarem. O frio e bebida
já se fazem presente diversas vezes, mas a neve surge com sua brancura e torna a
já inerente necessidade uma pulsão.
Jean Renoir um dia disse “um diretor só faz um filme sua
vida toda, depois o recorta e o faz de novo”. Esta frase se aplica a qualquer
diretor, qualquer um que consegue construir uma estética cinematográfica, algo
que está para além de uma ideia simplista de autor = diretor/escritor no cinema.
Hong Sang-Soo abusa desta máxima, como o professor Michael A. Unger salientou,
em seu artigo “Hong Sang-Soo Codes of Parallelism”, que o diretor produz uma
repetição como um eco. Não é uma repetição mimética, não, mas uma repetição que
contém diferentes graus de movimento, ou seja, de afeto.
Quando na mesma narrativa o diretor duplica a história é
como se ele demandasse uma atividade do espectador, uma atividade da memória.
Assim, podendo recuperar as repetições, ou perceber as diferenças, como se o
afeto do espectador pudesse se guiar na narrativa de maneira mais implicada, o
posicionando como leitor. Mas, para o leitor que já assistiu a outros filmes do
diretor é como se ele houvesse um grande acervo de memória, um grande passado,
como o dos próprios personagens que está para ecoar. Estes ecos são percepções,
sonhos e ficções. No seu filme mais singular até então, O Dia Em Que Ele Chegar
é possível perceber os efeitos desse eco, pois a história se repete três vezes,
com diálogos repetidos, atrizes repetidas, ações repetidas, é como esse eco
construísse um eterno bloco narrativo em que seus personagens se inserem.
Talvez seja uma possível produção formalista demais para
quem procura o maximalismo dos blockbusters. O minimalismo do diretor é
aprazível e complexo, seus ecos são verdadeiras peças de um quebra-cabeça
gigantesco, pois nunca se encerram com um filme, apenas os compõem em um grande
quebra-cabeça. Parece que se torna necessário sempre rever seus filmes, pois
sabe-se muito bem que haverá mais no mínimo que existe, sempre haverá mais.
Certo Agora, Errado Antes, Hong Sang Soo, 2015

Noite e Dia, Hong Sang-Soo, 2008
Comentários
Finais
Vale ressaltar, por fim, o seu método extremamente
improvisado na produção dos filmes. Muitas vezes apenas convida os atores e
constrói os personagens em cima destes, o enredo só surge na manhã de gravação,
dando mais ou menos meia hora para cada ator decorar suas falas. É de se
impressionar como suas narrativas se entrelaçam com uma coesão absurda, caindo,
para muitos, em um formalismo, mas expressam essa sensação de fluidez e
improviso que destrói qualquer forma. Seu cinema é uma idiossincrasia imensa.
Sua
relação com o que é a realidade, foge de qualquer relação com uma possível
essência do real, se assemelha a um existencialista que pretende rearranjar sua
própria realidade. Assumindo veementemente em seus filmes a não existência da
coisa em si e de que qualquer coisa pode ser qualquer coisa. Assim sendo, seu
filme é um verdadeiro experimento dos encontros da existência de seus personagens.
Como sua narrativa é construída durante as filmagens é possível extrair muito
do que está em locação para construção da história, assim como tudo pode
acontecer, pois nada é planejado.
Portanto, seu filme durante o processo de construção está
sempre em movimento, só existe de fato quando se finaliza. Pois um roteiro não
é um filme, uma câmera não é um filme, um ator não é um filme, é toda uma
conjunção que se encontra na montagem cinematográfica. E não se assemelha com a
vida? Os agenciamentos que constituem quem somos em cada momento, pessoas,
desejos, coincidências, tantas coisas que se chocam.
Filmografia
O Dia em Que o Porco Caiu no
Poço (1996)
O Poder da Província de
Kangwoon (1998)
A Virgem Desnuda Por Seus
Celibatários (2000)
A Visitante Francesa (2012)
Certo Agora, Errado Antes
(2015)
Você e os Seus (2016)
On The Beach Alone at Night
(2017)
The Day After (2017)
Claire’s Camera (2017)









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