sábado, 12 de agosto de 2017

Diretores - Hong Sang-Soo (Coreia do Sul)

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Hong Sang-Soo é um diretor coreano, com já realizados 20 filmes, até o ano de 2017. Narrando sempre as mesmas histórias sobre artistas frustrados e melancólicos, perdidos no tempo, alguns fugindo do futuro, outros correndo do passado. A repetição é sua máxima, algumas ocasiões também tendem a se repetir e se tornaram sua marca, como os encontros para beber de seus personagens, que muitas vezes revelam mais do que deveriam, liberam seu inconsciente e se expressam de verdade, ou ainda, as traições, os casos, os amores impossíveis passageiros e para a vida toda. Pode-se dizer que sempre é a mesma história, fragmentos de sua conturbada vida que se conectam e reconectam, e continuam a produzir ótimos filmes, por mais simples que seja, constrói enredos enigmáticos, por seus diálogos que exploram a própria condição existencial humana, sem nunca tentar ser poético, sempre de forma simples, sem eloquência, muitas vezes tudo é dito num tom atonal de um bêbado fanfarrão. 
            
Portanto, neste texto, tenho intuito de ressaltar alguns recursos imagéticos que justificavam sua estética, entre elas a Iluminação límpida, a utilização do espaço e de objeto para falar das sensações e histórias dos personagens e, por fim, o uso da repetição no decorrer de seus filmes.
           
A Iluminação e a Pintura

Mas de onde vem está paixão por expressar cenas cotidianas ao máximo? Pois bem, obviamente existem referências claras advindas da Nouvelle Vague, como Alain Resnais, ou Eric Rohmer, enquanto um explora o tempo e o sonho de forma que se tornam sempre indiscerníveis, o outro repete suas crônicas sobre relacionamentos amorosos. E ainda em Luís Buñuel, já que essa mistura entre o sonho e a vida, desejos, medos já é uma característica do surrealismo, acentuando o que é realidade, mas que comumente não é visível objetivamente, eles se distinguem pelo fato de Hong usar de um minimalismo poderoso, aquém do lado mais pictórico e simbolista. Entretanto, além desta óbvia influência do cinema, existe uma certa tradição que parece se expressar em sua estética, identificada em três pintores com ideias diferentes. Cézanne, o pintor favorito do diretor, Courbet, no qual já teve uma pintura discutida em seus filmes e Vermeer, pintor de obras cotidianas. Mas o que tais pintores têm em comum? Um pós-impressionista, um realista (radical, diga-se de passagem) e um pintor barroco. O uso da luz nos três é essencial, assim como a própria natureza das pinturas que retratam acontecimentos simples repetidas vezes.

Vermeer foi um pintor da era de ouro dos Países Baixos, ele seguiu em contraponto à usual pintura barroca com sua grandiloquência e principalmente em contraponto ao até então marco do uso de sombras das pinturas. Propondo pintar ações extremamente cotidianas, sob uma luz poderosa. onde nada se fazia desconhecido, ou melhor, nada parecia misterioso (mas ainda assim complexo), explorando toda potência do visível. Muito de seus quadros ocorriam num ambiente singular, uma bancada, por vezes uma escrivaninha ou pia, em que seus personagens faziam ações habituais como despejar leite em jarros, ou apenas olhar para a janela. Surgindo como o verdadeiro observador dos acontecimentos mais profundos e sutis dos corpos expostos nos quadros, pois em vez de produzir situações que mudaram o mundo ou a grandiosidade dos rituais humanos, revestidas em um breu absurdo e quase surreal, ele coloca sob a luz as minúcias da ação cotidiana, nenhum deles é herói, apenas são o que são.


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O Encontro, Gustave Courbet, 1854


Courbet foi um pintor que estava propondo um novo olhar sobre as pinturas, sendo um dos precursores do movimento do realismo na pintura. Procurava tudo que era concreto e que fosse visível, ele gostaria de expressar em suas pinturas os costumes e modos de vida em sua época a partir de sua perspectiva.  Sempre usando de uma iluminação, por vezes límpidas por outras vezes triste, mas sempre iluminando o caminho de seus personagens, seguindo a tradição de Vermeer ao pintar ações quaisquer. Pois pintava acontecimentos simples, corpos nus, retratos, sempre procurando uma extração de um aspecto da realidade, mas ressaltando que é um homem e como qualquer outro, sabe que existe uma influência de quem vê. Ao mesmo tempo que gostaria de servir como objeto de estudo da história de seu tempo, gostaria de ser entendido por quem é.

Já Paul Cézanne, que foi influenciado fortemente por Courbet, a princípio, seguiu pelo caminho do impressionismo, no qual explorava a percepção humana, porém, evolui tal potência à própria ação de transbordar da mesma, pois a percepção nunca é pura, sempre está carregada de sentimentos, desejos, sonhos, todos essas coisas entrelaçadas, de forma que ao olho nu se tornam indiscerníveis. Nunca procurando apreender o que vê de forma perfeita (aqui é onde se difere dos dois anteriores, pois renuncia fortemente o aspecto austero e supostamente realista das pinturas) e sim da forma que ele as vê. Se tornando em consequência disto um precursor do cubismo, no qual diversas percepções se entrelaçam, tentando conduzi-las de forma que se tornassem vívidas até mesmo táteis. 

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Os Jogadores de Cartas, Paul Cezánne, 1890

Tendo em vista a proposta dos pintores e a semelhante postura de enquadrar com limpidez, Hong Sang-Soo usa da luz para contar suas histórias de forma que as sombras nunca se produzam como ponto principal, sempre se ressaltando nas bordas, apenas para dar forma ao exposto, uma mistura em que tudo se torna visível aos olhos do espectador. As diversas percepções se misturam durante seus filmes, como em A Virgem Desnuda Pelos Seus Celibatários ou em Certo Agora, Errado Antes, no qual a história é contada duas vezes e diferentes construções são feitas a partir de singelas nuances. Ou ainda, sua habilidade de misturar o próprio sonho de seus personagens com a narrativa vigente seja em A Mulher É o Futuro do Homem, ou A Montanha da Liberdade. De forma ainda mais eloquente, consegue misturar sua própria vida, seus desejos e sua própria percepção sobre questões mundanas, como a decadente masculinidade contemporânea, expresso de maneira mais poderosa em O Filme de Oki e, também, em Noite e Dia. 


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Noite e Dia, Hong Sang-Soo, 2008

Mas a potência máxima de sua forma fragmentada de construir um filme é percebida pela sua noção de que a narrativa como a própria vida é movida de forma confusa, na qual, por meio de nossas próprias escolhas, de nossos desejos mais inconscientes, fazemos coexistir diversas formas de ser, querer e agir, tudo isto em composição ainda com a própria incerteza da vida, das coincidências e comicidades da tragédia humana. Ser humano este que busca incessantemente por sentido, busca culpados e se torna um estranho ou falso quando aceita esta incerteza.
            
Seus personagens são por vezes manipuladores e misóginos, outras vezes inocentes perdedores e mais alguns são artistas perdidos, mas de fato, todos são frustrados por questões simples que se expressam quando bebem. Eles se repetem, se multiplicam, pois Hong Sang-Soo é prolífico e seus personagens são os mesmos, suas situações são as mesmas, mas como consegue produzir algo de novo na repetição? Ele muda a narrativa em todos os seus enredos, sempre se tem uma forma geométrica de infinitos lados que a mesma situação é explorada por tantas perspectivas, que se misturam e se tornam poderosas armas da produção narrativa. O Dia Em Que Ele Chegar é a maior expressão dessa maneira de explorar a vida na mistura que é possível de se fazer na ficção de percepções, desejos, sonhos.
            
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O Dia em que Ele Chegar, Hong Sang-Soo, 2011

Por isso, a luz se faz necessário, para tornar aquilo que comumente não é exposto, completamente visível, demonstrando a complexidade, a beleza e estranha simplicidade das relações humanas. 
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A Visitante Francesa, Hong Sang-Soo, 2012

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Como Você Sabe de Tudo, Hong Sang-Soo, 2009

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Certo Agora, Errado Antes, Hong Sang-Soo, 2015

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 Jovem com Jarra de Água, Vermeer, 1662                            O Geográfo, Vermeer, 1669



O Tempo é o Minotauro
            
Porém, como manter o espectador ainda instigado com tantos filmes que se revelam, revelam as peculiaridades de seus personagens de forma tão límpida? Já foi dito que sua indiscernibilidade é como o interior de uma pessoa, ou seja, ele torna diversos modos humanos visíveis, porém eles não se diferenciam tanto, são como uma mistura, mas existe também outro fator estrutural que envolve a maneira que a memória percorre seus personagens. Em muitos de seus filmes, a cronologia se torna uma bagunça, não apenas para tornar a história mais cômica (como em A Montanha da Liberdade), mas para tornar seus personagens presos em um fluxo de memória que não se faz pela linha comum de Cronos, mas por pontuações de afetos, não é uma documentação do que ocorreu, mas agenciamentos desconexos da memória de seus personagens.
            
Hong usa diversos recursos simples que demonstram a estagnação no tempo de alguns de seus personagens, ou ainda a vontade de fugir do passado com todas suas forças. Existem duas figuras imagéticas que expressam essas potencialidades, a primeira é a fotografia, sempre presente nos primeiros filmes do diretor e sendo ainda mais poderosa em alguns de seus filmes recentes. Em O Dia em que o Porco Caiu no Poço, uma das personagens destrói a fotografia de seu marido e filho, como se precisasse apagar estas memórias, ou a narrativa de Ha Ha Ha que é completamente guiada por fotografias do presente, enquanto o passado se move com imagens-movimentos. Ou seja, a fotografia é como um instante único que se cristaliza e nunca retorna a se movimentar, nem para se afastar, nem para voltar. Assim, o diretor coreano as usa de maneira múltipla, rearranjando seus próprios signos em prol de cada um de seus filmes. No primeiro filme citado, o desejo é que a fotografia se afaste, que o passado se vá, em Ha Ha Ha, já não é o passado que não se move, este permanece com um frescor, uma vivacidade, enquanto o presente, em fotografias descoloridas parece estagnado, petrificado. Chega a ser irônico na proposta deste segundo filme, já que os dois personagens estão se preparando para viajar, para uma nova vida, mas pelas fotografias, existe uma sensação de que as coisas não vão se tornar melhores que o passado.
            
Outro caso importante é em O Dia Em Que Ele Chegar, quando o protagonista depois de uma incursão repetitiva se depara com uma mulher que deseja tirar uma foto dele, seu rosto é de puro terror. É com essa imagem que o filme se finaliza. Já é sabido que foi dessa forma que o diretor conheceu sua ex-mulher (durante este filme eles ainda estavam casados), porém existe uma demarcação poderosa de um homem olhando para as lentes da câmera, como se soubesse que aquele momento, que grande parte das afecções que ainda estavam no corpo iriam se esvair com o clique da câmera, iriam se tornar seu passado. Assim como Roland Barthes disse em A Câmera Clara “A Morte é o eidos da Foto”, ou seja, deixa de ser sujeito e torna-se spectrum, é como passar por uma experiência de morte. Embalsamando o momento. Aquele que sempre retorna, como se o medo de seus personagens pelo passado seja pelo medo de que tudo se repita, e não é exatamente isso que costuma acontecer?
            
O segundo recurso sempre esteve presente, mas veio se tornando mais relevante em seus filmes mais recentes. Os lugares históricos, os templos, as fortalezas, a arquitetura da memória de todo um país. Não é à toa que seus personagens viajam tanto, sempre em movimento, sempre fugindo do passado, porém as demarcações do passado estão na própria matéria do local. Então, quando a protagonista de Nossa Sunhi vai embora e deixa para trás todos os seus possíveis pretendentes perdidos, vagando por um imenso templo, ou quando Haewon, de Filha de Ninguém, precisa se desprender de seu professor e amante para seguir sua própria vida, seus encontros oníricos ou reais, são em uma fortaleza gigantesca. Em O Portão do Regresso seu personagem tem tanta relação com a lenda do local, que não ousa nem mesmo visitar para não enfrentar seu próprio passado. Em Ha Ha Ha, o protagonista sonha com um herói histórico, para possivelmente entender-se. 

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O Dia Em Que Ele Chegar, Hong Sang-Soo, 2011

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Nossa Sunhi, Hong Sang-Soo, 2013

Cartografando vidas com a câmera, usando de um recurso espacial e visual que costuma evocar memória em seus personagens, talvez não memória, seria melhor dizer algum tipo de afeto que os move, os move à mudança, é como o mar. A Mulher na Praia, Como Você Sabe de Tudo, A Visitante Francesa, O Poder da Provincia de Kangwon, em todos esses longas o mar sempre surge de forma convulsa como a vida de seus personagens, é de uma beleza sem igual. Por fim, vale ressaltar o uso da neve em seus filmes, tanto quanto o mar, O Dia Em Que Ele Chegar, O Conto de Cinema, O Filme de Oki, A Mulher É o Futuro do Homem, Certo Agora, Errado Antes, também evoca uma necessidade maior dos personagens de se comunicarem, de se juntarem. O frio e bebida já se fazem presente diversas vezes, mas a neve surge com sua brancura e torna a já inerente necessidade uma pulsão.

 O Eco e a Repetição
            
Jean Renoir um dia disse “um diretor só faz um filme sua vida toda, depois o recorta e o faz de novo”. Esta frase se aplica a qualquer diretor, qualquer um que consegue construir uma estética cinematográfica, algo que está para além de uma ideia simplista de autor = diretor/escritor no cinema. Hong Sang-Soo abusa desta máxima, como o professor Michael A. Unger salientou, em seu artigo “Hong Sang-Soo Codes of Parallelism”, que o diretor produz uma repetição como um eco. Não é uma repetição mimética, não, mas uma repetição que contém diferentes graus de movimento, ou seja, de afeto.
            
Quando na mesma narrativa o diretor duplica a história é como se ele demandasse uma atividade do espectador, uma atividade da memória. Assim, podendo recuperar as repetições, ou perceber as diferenças, como se o afeto do espectador pudesse se guiar na narrativa de maneira mais implicada, o posicionando como leitor. Mas, para o leitor que já assistiu a outros filmes do diretor é como se ele houvesse um grande acervo de memória, um grande passado, como o dos próprios personagens que está para ecoar. Estes ecos são percepções, sonhos e ficções. No seu filme mais singular até então, O Dia Em Que Ele Chegar é possível perceber os efeitos desse eco, pois a história se repete três vezes, com diálogos repetidos, atrizes repetidas, ações repetidas, é como esse eco construísse um eterno bloco narrativo em que seus personagens se inserem.
            
Talvez seja uma possível produção formalista demais para quem procura o maximalismo dos blockbusters. O minimalismo do diretor é aprazível e complexo, seus ecos são verdadeiras peças de um quebra-cabeça gigantesco, pois nunca se encerram com um filme, apenas os compõem em um grande quebra-cabeça. Parece que se torna necessário sempre rever seus filmes, pois sabe-se muito bem que haverá mais no mínimo que existe, sempre haverá mais. 

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Certo Agora, Errado Antes, Hong Sang Soo, 2015

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Noite e Dia, Hong Sang-Soo, 2008


Comentários Finais
            
Vale ressaltar, por fim, o seu método extremamente improvisado na produção dos filmes. Muitas vezes apenas convida os atores e constrói os personagens em cima destes, o enredo só surge na manhã de gravação, dando mais ou menos meia hora para cada ator decorar suas falas. É de se impressionar como suas narrativas se entrelaçam com uma coesão absurda, caindo, para muitos, em um formalismo, mas expressam essa sensação de fluidez e improviso que destrói qualquer forma. Seu cinema é uma idiossincrasia imensa.

Sua relação com o que é a realidade, foge de qualquer relação com uma possível essência do real, se assemelha a um existencialista que pretende rearranjar sua própria realidade. Assumindo veementemente em seus filmes a não existência da coisa em si e de que qualquer coisa pode ser qualquer coisa. Assim sendo, seu filme é um verdadeiro experimento dos encontros da existência de seus personagens. Como sua narrativa é construída durante as filmagens é possível extrair muito do que está em locação para construção da história, assim como tudo pode acontecer, pois nada é planejado.
            
Portanto, seu filme durante o processo de construção está sempre em movimento, só existe de fato quando se finaliza. Pois um roteiro não é um filme, uma câmera não é um filme, um ator não é um filme, é toda uma conjunção que se encontra na montagem cinematográfica. E não se assemelha com a vida? Os agenciamentos que constituem quem somos em cada momento, pessoas, desejos, coincidências, tantas coisas que se chocam. 


Filmografia
O Dia em Que o Porco Caiu no Poço (1996)
O Poder da Província de Kangwoon (1998)
A Virgem Desnuda Por Seus Celibatários (2000)
A Visitante Francesa (2012)
Certo Agora, Errado Antes (2015)
Você e os Seus (2016)
On The Beach Alone at Night (2017)
The Day After (2017)
Claire’s Camera (2017)

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