
Este filme é onde culmina toda
a estética do diretor. Principalmente no que condiz com seu conteúdo, em que o
rio, seu principal signo poético, se torna praticamente um dos mais importantes
personagens da história. Narrando a história de uma família britânica que vive
na Índia colonizada, em que todos os personagens de certa forma entram em
contato com a morte e passam por processos da mudança eterna da vida.
O primeiro fato deste longa é que ele foi gravado na
Índia, tendo como ajudante de direção Satyajit Ray, que viria se tornar um dos
diretores mais importantes da história alguns anos depois, além de fundar o
movimento de cinema paralelo, uma espécie de Neorrealismo que não só
popularizou o cinema de seu país, como também construiu uma imagem não
romantizada de sua cultura. Percebe-se que o senso de realismo de Jean Renoir
atravessou tanto o Neorrealismo Italiano quanto o Cinema Paralelo da Índia, sua
importância histórica para o cinema é gigantesca, talvez seja maior do que
costumam atribuir. O segundo fato interessante de ressaltar é que este é o
primeiro longa colorido do diretor, em que as cores surgem num tecnicolor
extasiante, cada plano surge como numa pintura, além de construir um aspecto
mágico comum a este tipo de correção de cor. Bem, no que concerne à sua forma, o
longa contém a mesma leveza sútil de Um Dia no Campo, o mesmo poder idílico, o
mesmo potencial impressionista, em que a paisagem sempre está em movimento, em
que suas cores parecem mover-se com o vento. Além disso contém a mesma fluidez
que um rio em sua narrativa elíptica, com bastante planos sequências que
conduzem todos os seus acontecimentos com precisão, captando os movimentos dos
personagens pelo ambiente em todos os detalhes.
O enredo apresenta de maneira bem concisa à situação do
colonialismo britânico, sem explorá-lo devidamente, pois logo percebe-se que
diferentemente do que se espera, da situação proletário x burgueses que comumente
se apresenta nos filmes do diretor, o que temos aqui é um relato de uma
britânica no país. Esta personagem é Harriet, em que narra a partir de suas
memórias da estádia neste país quando ainda jovem, em que seu pai era o dono de
uma fábrica. Ou seja, é um olhar carregado de ingenuidade e deslumbramento. Um
olhar que não está atento a essas questões. Ela tem diversas irmãs e um irmão
mais novo, Bogey, o mais calado, sempre está brincando com um garoto indiano,
conhecendo o território. A história ganha seus contornos com a chegada do
capitão John, um homem que lutou na guerra e desperta o coração da
protagonista. Mas não só o dela, Valerie, uma amiga sua, britânica, entra neste
fluxo de paixão e Melaine, uma jovem indiana, filha de um homem britânico com
uma mulher indiana.
As três personagens acabam passando por processos de
produção de identidade muito forte. Melaine principalmente, pois não consegue
se enxergar como uma britânica por conta de seu fenótipo, porém percebe que não
está bem inserida na cultura indiana, pois viveu anos e anos na Inglaterra. É
como se sentisse uma estrangeira, muito maior que a de qualquer um dos outros
personagens, porém seu estranhamento não é com o país em que ela está, mas com
seu próprio corpo. Ela estabelece uma conexão mais coerente com o Capitão John já
que o mesmo tem um problema de identificação com o próprio corpo já que perdeu
sua perna na guerra e usa uma prótese. As duas meninas mais jovens estão num
percurso tão complexo quanto, o da noção de morte infantil, a própria maturidade.
Mas que morte é essa que assola os personagens? Algumas
são simbólicas, outras não. A morte simbólica se encontra na morte da criança
de Harriet e Valerie, enquanto uma percebe que não está preparada ainda para a
realidade sórdida do mundo, a realidade de um beijo, outra se vê confusa demais
sobre o que sente, sente a culpa tão comum ao mundo neurótico adulto. Essa
disparidade entre as ações dos adultos com as das crianças ou jovens é posta em
diversos discursos como um belíssimo do pai de Melaine, sobre como os adultos
impõe esse mundo absurdo, caótico, em que empurram as crianças para a escola,
para suas guerras egoístas, retiram elas do mundo aventureiro, explorador que
está aí, na natureza.
Mas quem pensa que a narrativa se prende apenas às
narrativas individuais dos burgueses, muito se engana. Renoir não deixa de
apresentar o local, o território em que vivem, como as tradições, os pequenos
detalhes de alguns mitos e conceitos atravessam a vivência deles lá. Não é à
toa que em sua introdução percorre-se o rio, se ressalta que todos os sujeitos
da região vivem com a ajuda deste rio. O rio atravessa a vida de todos, pois
como já disse em outras críticas ele é a mudança inexorável do tempo, porém
diferente da maneira que era retratado como uma linha reta ele parece ter se
tornado um círculo.
Bem, fazer é isso é deslocar a noção de efemeridade da
vida, para a de eternidade. Perceba, que nesse fluxo da vida nada se perde de
fato, muitos acreditam na concepção de que o que já aconteceu foi perdido.
Realmente, não é possível recupera-lo, porém ele é eterno. Um acontecimento que
se foi, mas está no fluxo, irá retornar de outra forma. É só ver a quantidade
de ciclos que se fecham e se abrem até o fim do longa, é numa noção como essa
que o tempo do diretor se faz nesse belíssimo filme.
Por fim, este é um dos trabalhos mais poderosos do
diretor. Sim, as atuações em certos momentos deixam a desejar, porém os
personagens são tão especialmente construídos e desenvolvidos, sua narrativa
visual está num afinco tremendo e por fim, o rio, mais belo que nunca se torna
finalmente um personagem no qual Renoir não pode escapar. Assim encerro com a
frase final do longa, as últimas palavras de Harriet mais velha:
“O Rio corre, o mundo gira
O amanhecer e o entardecer
O meio dia e a meia noite
O Sol segue o dia,
A noite, as estrelas e a Lua
O dia termina
O fim começa”
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