terça-feira, 9 de janeiro de 2018

1951 – Rio Sagrado (Jean Renoir, França, Índia e Inglaterra) ***** (5.0)

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Este filme é onde culmina toda a estética do diretor. Principalmente no que condiz com seu conteúdo, em que o rio, seu principal signo poético, se torna praticamente um dos mais importantes personagens da história. Narrando a história de uma família britânica que vive na Índia colonizada, em que todos os personagens de certa forma entram em contato com a morte e passam por processos da mudança eterna da vida.
            
O primeiro fato deste longa é que ele foi gravado na Índia, tendo como ajudante de direção Satyajit Ray, que viria se tornar um dos diretores mais importantes da história alguns anos depois, além de fundar o movimento de cinema paralelo, uma espécie de Neorrealismo que não só popularizou o cinema de seu país, como também construiu uma imagem não romantizada de sua cultura. Percebe-se que o senso de realismo de Jean Renoir atravessou tanto o Neorrealismo Italiano quanto o Cinema Paralelo da Índia, sua importância histórica para o cinema é gigantesca, talvez seja maior do que costumam atribuir. O segundo fato interessante de ressaltar é que este é o primeiro longa colorido do diretor, em que as cores surgem num tecnicolor extasiante, cada plano surge como numa pintura, além de construir um aspecto mágico comum a este tipo de correção de cor. Bem, no que concerne à sua forma, o longa contém a mesma leveza sútil de Um Dia no Campo, o mesmo poder idílico, o mesmo potencial impressionista, em que a paisagem sempre está em movimento, em que suas cores parecem mover-se com o vento. Além disso contém a mesma fluidez que um rio em sua narrativa elíptica, com bastante planos sequências que conduzem todos os seus acontecimentos com precisão, captando os movimentos dos personagens pelo ambiente em todos os detalhes.
            
O enredo apresenta de maneira bem concisa à situação do colonialismo britânico, sem explorá-lo devidamente, pois logo percebe-se que diferentemente do que se espera, da situação proletário x burgueses que comumente se apresenta nos filmes do diretor, o que temos aqui é um relato de uma britânica no país. Esta personagem é Harriet, em que narra a partir de suas memórias da estádia neste país quando ainda jovem, em que seu pai era o dono de uma fábrica. Ou seja, é um olhar carregado de ingenuidade e deslumbramento. Um olhar que não está atento a essas questões. Ela tem diversas irmãs e um irmão mais novo, Bogey, o mais calado, sempre está brincando com um garoto indiano, conhecendo o território. A história ganha seus contornos com a chegada do capitão John, um homem que lutou na guerra e desperta o coração da protagonista. Mas não só o dela, Valerie, uma amiga sua, britânica, entra neste fluxo de paixão e Melaine, uma jovem indiana, filha de um homem britânico com uma mulher indiana.
            
As três personagens acabam passando por processos de produção de identidade muito forte. Melaine principalmente, pois não consegue se enxergar como uma britânica por conta de seu fenótipo, porém percebe que não está bem inserida na cultura indiana, pois viveu anos e anos na Inglaterra. É como se sentisse uma estrangeira, muito maior que a de qualquer um dos outros personagens, porém seu estranhamento não é com o país em que ela está, mas com seu próprio corpo. Ela estabelece uma conexão mais coerente com o Capitão John já que o mesmo tem um problema de identificação com o próprio corpo já que perdeu sua perna na guerra e usa uma prótese. As duas meninas mais jovens estão num percurso tão complexo quanto, o da noção de morte infantil, a própria maturidade.
            
Mas que morte é essa que assola os personagens? Algumas são simbólicas, outras não. A morte simbólica se encontra na morte da criança de Harriet e Valerie, enquanto uma percebe que não está preparada ainda para a realidade sórdida do mundo, a realidade de um beijo, outra se vê confusa demais sobre o que sente, sente a culpa tão comum ao mundo neurótico adulto. Essa disparidade entre as ações dos adultos com as das crianças ou jovens é posta em diversos discursos como um belíssimo do pai de Melaine, sobre como os adultos impõe esse mundo absurdo, caótico, em que empurram as crianças para a escola, para suas guerras egoístas, retiram elas do mundo aventureiro, explorador que está aí, na natureza. 
            
Mas quem pensa que a narrativa se prende apenas às narrativas individuais dos burgueses, muito se engana. Renoir não deixa de apresentar o local, o território em que vivem, como as tradições, os pequenos detalhes de alguns mitos e conceitos atravessam a vivência deles lá. Não é à toa que em sua introdução percorre-se o rio, se ressalta que todos os sujeitos da região vivem com a ajuda deste rio. O rio atravessa a vida de todos, pois como já disse em outras críticas ele é a mudança inexorável do tempo, porém diferente da maneira que era retratado como uma linha reta ele parece ter se tornado um círculo.
            
Bem, fazer é isso é deslocar a noção de efemeridade da vida, para a de eternidade. Perceba, que nesse fluxo da vida nada se perde de fato, muitos acreditam na concepção de que o que já aconteceu foi perdido. Realmente, não é possível recupera-lo, porém ele é eterno. Um acontecimento que se foi, mas está no fluxo, irá retornar de outra forma. É só ver a quantidade de ciclos que se fecham e se abrem até o fim do longa, é numa noção como essa que o tempo do diretor se faz nesse belíssimo filme.
            
Por fim, este é um dos trabalhos mais poderosos do diretor. Sim, as atuações em certos momentos deixam a desejar, porém os personagens são tão especialmente construídos e desenvolvidos, sua narrativa visual está num afinco tremendo e por fim, o rio, mais belo que nunca se torna finalmente um personagem no qual Renoir não pode escapar. Assim encerro com a frase final do longa, as últimas palavras de Harriet mais velha:

“O Rio corre, o mundo gira
O amanhecer e o entardecer
O meio dia e a meia noite
O Sol segue o dia,
A noite, as estrelas e a Lua
O dia termina
O fim começa”

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