domingo, 14 de janeiro de 2018

1952 – A Carruagem de Ouro (Jean Renoir, França & Itália) ****1/2 (4.5)

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O segundo filme colorido na carreira do diretor e que demarca duas coisas, a primeira é seu retorno à França e a segunda o início de sua trilogia dos espetáculos (forma que prefiro nomear esta sequência na carreira dele), aqui salientando o teatro. A história se passa no Peru, em que a atriz italiana Camila, interpretada com um fervor vívido por Anna Magnani, chega no país para fazer o nome na América do Sul, porém acaba se envolvendo num quadrado amoroso (se é que isso existe).
            
De forma magistral, o longa se inicia com uma introdução num teatro, aos poucos a câmera adentra no cenário, partindo para os cômodos onde alguns personagens da nobreza europeia se encontram. É como dizer que se estar entrando num universo daquela arte, daquele espetáculo. De início, é possível sentir que parece faltar algo de cinematográfico, o teatral se encontra ainda mais forte em algumas das atuações, mas a comédia burlesca do diretor impressiona, com a passagem rápidas dos personagens de dentro para fora do enquadramento e a própria noção de mundo aberto proposto pelas janelas abertas com a imensidão desértica do local fazem com que o estilo de Renoir surja. O tecnicolor cria uma áurea plástica sim, ao mesmo tempo que o ajuda ao espalhafatoso do burlesco se fazer presente de maneira ainda mais divertida, as roupas da trupe de teatro são próximas do estilo cubista, por exemplo, dando uma ênfase moderna aos personagens.
            
A trupe de teatro ao chegar no país se impressiona com a disparidade que marcou o mundo das elucubrações dos homens ambiciosos. Onde está El Dorado, onde estão os encantos das lendas? Neste cenário, o teatro no qual a trupe pretende se apresentar está completamente destruído e, assim, o grupo decide se apresentar para conseguir dinheiro para a reforma do local. Tudo isso move os olhos dos nobres do local, inclusive do Vice-Rei que se apaixona pela força de Camila. Eles também se apresentam no palácio para então o nobre ficar completamente perdido pela mulher, além disso, outros encantados surgem. Ramón, o toureador famoso da região, másculo e viril. Em meio a esses dois pretendentes, ainda existe a paixão de seu companheiro Felipe, o homem que a ajudou a chegar lá, que passa a ficar enciumado por perder a exclusividade da atenção da vívida Camila.
            
Existem breves passagens sobre os índios latinos, sobre como alguns dos grandes homens ambiciosos queriam exterminar a existência dos sujeitos com práticas e rituais distintos, porém outros se encantavam e passaram a conviver em harmonia com eles em suas tribos. É possível ver as diferentes visões de sujeitos existentes nos três homens que rodeiam Camila. O grande Vice-Rei a presenteia com a carruagem de ouro, um objeto que para aqueles sujeitos ambiciosos fazia tanto sentido quanto a arte, o ouro brilhava como um espetáculo. Felipe procura com sua lealdade, sua presença, demonstrar o quanto pode dar a ela, mas a mesmo tempo se perde no reino de obrigações e Ramón, não para de se vangloriar sobre seus feitos. Mas essa complexa organização traz de volta uma dualidade forte entre os burgueses e os proletários. Os diálogos de Camila com o Vice-Rei são primorosos, “como pode, com tanta desenvoltura, odiar tudo que amamos? Como aprende esse truque? ”.

Camila, porém, não é passiva diante da situação. Ela retira o que bem entende de cada circunstância, de cada espetáculo. Um dos últimos momentos do filme, no qual, seus três pretendentes entram em sua residência e tentam encontrá-la, porém ela foge, disfarça, engana, ou melhor, ela atua. Com a câmera, Renoir, demonstra o que há mais de cinematográfico nos limites do enquadramento, construindo uma relação de fluxos de entradas e saídas do quadro, que se complementam com o movimento breve de câmera. Anna Magnani é um espetáculo, atua, faz de uma vida inteira um teatro completo, o mundo se torna o palco e o palco se torna o mundo, com a câmera de Renoir e com a perfeita expressão da atriz italiana.
            
Mas o grande momento deste filme reside em sua última cena, em que concretiza completamente sua ideia. Seu filme reveste-se do prazer do espetáculo, fazendo uma das mais belas homenagens ao teatro, sem se tornar teatro. Adentrando em seu universo e brincando com a indiscernibilidade do processo do ator, com a própria maneira que nos portamos em qualquer ambiente. Quem é Camila, quem é Anna Magnani?
            
De certo modo, o realismo do diretor que era atingido com o uso de locações, câmeras com mais movimentos, com seus próprios devaneios, deu lugar aqui a uma câmera quase estática, um ambiente plástico em conjunto com as cores. Porém, todo esse revestimento em falso se faz da magia do espetáculo, além do mais, cinematograficamente este filme contém signos do realismo em suas janelas abertas, em sua eloquência do quadro aberto, o mundo está sempre aberto, como Deleuze afirmou em Imagem-Tempo, Renoir cria cristais rachados que deixam algo fluir para fora, o que escapa do teatro é a própria vida, ou melhor do teatro e consequentemente do cinema faz a vida florescer. 

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