quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

2016 – Sieranevada (Cristi Puiu, Romênia) **** (4.0)

 photo Sieranevada_zpsnb3yccy9.jpg

Os diretores do Novo Cinema Romano possuem características muito distintas, mas tratam 
dos mesmos temas de uma maneira extremamente realista, usando até mesmo certas técnicas em comum, como os longuíssimos planos. Mas o que seria esse Novo Cinema Romeno? Muitos estão chamando essa onda de bons realizadores surgindo nos últimos anos no país dessa forma, pois, todos trazem um suposto realismo aos seus filmes, alguns optam por dramas silenciosos sobre a corrupção dos valores morais, outros por comédias irônicas, com um humor muito típico. Mas todos eles trazem consigo o peso da ditatura comunista, as críticas sociais ferrenhas ao comportamento dos romenos na contemporaneidade e, principalmente, a produção de um cotidiano, de um mundano extremamente bem elaborado. Sieranevada é um filme desta onda, dirigido por um de seus pioneiros Cristi Puiu, contando a história da reunião de uma família para realizar as cerimonias fúnebres de seu patriarca.
            
O longa possuí praticamente três horas, a história é contada em grande parte em tempo real, por isso, faz muito sentido usar diversos planos-sequências para a narração. Mas isso não quer dizer que não há elipses no enredo. Na primeira sequência do longa, por exemplo, em que um dos protagonistas, Lary, interpretado pelo simpático Mimi Branescu, para o carro numa rua de mão dupla, o momento é apresentado em tempo real, num longo plano, no qual em sua demora o faz ter que dar a volta. Então, sua mulher entra no carro, a câmera a acompanha se posicionando no banco de trás, então, enquanto os dois conversam até o seu destino, existem elipses, jump-cuts, era como se Acossado de Godard estivesse sendo referenciado de uma maneira poderosa. Já que os diálogos se desenrolavam da mesma forma, sem um fim real, apenas preenchiam o silêncio que se estabeleceria se qualquer um dos dois não emitisse sons.
            
Após chegarem à casa, o longa permanece praticamente o tempo todo enclausurado, acompanhado certo número de personagens por diálogos avulsos. Os temas passeiam de fato como numa reunião em família. O diretor ainda insere a presença constante de tema americanizados, talvez propondo o imperialismo cultural dos EUA consumindo um pouco a própria vivência romena, além disso, teorias de conspirações e a internet. O tema que mais se faz presente são as discussões sobre o comunismo, no caso o ateu de Tia Evelina, interpretada magistralmente por Tatiana Iekel. Ela trava uma batalha incessante com uma de suas sobrinhas, extremamente religiosa, ao mesmo tempo apavorada pelas histórias da ditatura.
            
Essas conversas parecem superficiais, até são. Elas soam extremamente realistas e simples, mas muitas servem para nos fazer pensar sobre o que habita o imaginário do homem comum contemporâneo, mais especificamente o romeno. Além de que, a maneira intensa que alguns personagens se relacionam com determinados temas e que como esses diálogos se desenvolvem é extremamente cômico. Puiu não deixa de lado, obviamente, a melancolia que reside no fundo de pano de cada uma daquelas conversas. O que falar com parentes que nem são de fato próximos? Inventam-se temas. E mais, por que essas coisas persistem na mente desses sujeitos?
            
O almoço que deveria ocorrer após a cerimônia se torna um jantar. O padre atrasa e é por isso que esses sujeitos caminham pela casa de forma arbitrária buscando passar o tempo para não se entediarem.  Os momentos do ritual, quando finalmente ocorrem, são primorosos. Aliás, trazem uma ferrenha visão crítica ao catolicismo atual. Todas as crenças, todas as filosofias, todos os grandes pensamentos do passado, hoje, soam falsos. Os tempos mudaram e as pessoas estão se tornando ainda mais inseguras com o que podem acreditar. Nem mesmo o padre acredita de fato no que faz, nem num mundo, nem em nada. É possível dizer até que a morte do patriarca aqui surge como um símbolo para a mudança dos tempos, dos valores. É perceptível também que não é dito que todas as mudanças são ruins, mas o que parece acontecer é exatamente o aumento da profundidade da falta existencial dos sujeitos, com a destruição dos valores antigos.
            
De todos os ótimos momentos do longa, o mais interessante ao meu ver, é o que o diretor traz um plano-sequência em um ambiente da casa em que quatro portas diferentes se conectam. Neste momento, uma jovem da família traz para casa uma estrangeira que parece estar sofrendo uma overdose. A forma que os personagens caminham de uma porta à outra, surgem de um ponto do quadro a outro, não só lembram Renoir, como também criam um ritmo imprescindível ao filme. É como uma dança, que tende a te surpreender com a sua eloquência.
          
Por fim, pode-se dizer que é possível ver muito do Brasil na Romênia. Cada qual com sua peculiaridade, porém com fantasmas parecidos, a intensa corrupção do povo e da política, o terror das ditaturas e as mudanças dos valores sociais. Com isto, Sieranevada – que possuí o título de uma cidade americana escrito de maneira incorreta, pelo simples motivo de parodiar longas metafísicos com nomes de cidades, além de demonstrar a própria americanização do resto do mundo – é um filme com fluidez, trabalhando com tempo de maneira precisa, fazendo o espectador adentrar como um observador presentificado no cotidiano de uma família romena. Qual maneira melhor de compreender o homem, se não ao lado dele?

Nenhum comentário:

Postar um comentário